Esse ser incomensurável, incessante, para uns esgueira-se, para outros tarda, o tempo. Certo é, marca as nossas vidas e cria-nos esperas.
Para Salvador, Aleks e Habib teima na aspereza. Nem a amenidade da época e o perfume das flores o demovem. Nada para eles mudou. Só a amizade e cumplicidade entre eles crescem.
O condomínio de luxo que todos dias os esgota, esse está de sonho. Pouco mais de meio ano. E não deixam de se espantar e de sentir orgulho por serem parte daquela construção. Cada vez mais de sonho. Acabamentos aprimoradíssimos. Que os amigos nem entendem. Que seres são esses que necessitam de tudo aquilo.
E naturalmente pensam na sua casita. Toda ela caberia em qualquer uma daquelas assoalhadas. Se fosse do tamanho de uma, sempre estaríamos mais à vontade. E no centro da cidade, loucura. Com jardins e tudo. O descampado da nossa já nada nos dá. Sempre daria para vermos outras coisas ao domingo. Comentam.
Há mais de um ano que a vida dos três não mexe. Só a alegria dos dois primeiros degraus se tem vindo a esfumar. E crescem as promessas adiadas. O primeiro degrau – o ordenado – estreito desde o início, com o custo de vida galopante, é cada vez mais apertado. E, claro, o segundo degrau – a casa – parece que cada vez mais vai encolhendo. Já merecíamos um pouco de privacidade. A nossa vida são dois degraus tão estreitos que a qualquer pequeno percalço periclitam.
Aliás, esta situação é a lenha da casa dos operários que naquela obra trabalham. Quase todos emigrantes. Mão-de-obra barata. E o ouro da casa do patrão. Lucro chorudo. Muitos degraus terá a sua vida, pensam os amigos. E como pode alguém viver bem com o mal que cria para o outro. Aquele que o ajuda a construir esses degraus dourados. E lembram-se daquela canção Os degraus, quanto mais altos,/ Mais estragados estão,1 Na uma hora de almoço, entre conversas abafadas, não fosse o encarregado despedi-los, há muito que todos os operários já se tinham apercebido da sua triste condição comum. Que a casa que ele fazia/ Sendo a sua liberdade/ Era a sua escravidão.2
Os amigos ouviram há tempos este poema por acaso. Num domingo na velha televisão. E logo acharam que lhes assentava que nem uma luva. Uma luva pobre e rota.
E vão somando poesia que tanto lhes ensina.
Ana Freitas
Notas:
1 Escada sem corrimão, David Mourão-Ferreira / Música: Reinaldo Varela
2 O Operário em construção, 1959, Vinicius de Moraes
Maravilha de crónica, Ana.
<3
Obrigada, Clarinda Galante.