“O Fardo do Homem Negro – Os efeitos do estado-nação em África”, por Basil Davidson (Campo das Letras, 2000) mereceu ao historiador Eric Hobsbawm o seguinte comentário: “Este é um livro de importância maior. O fardo do homem negro não é só de África que fala, mas também de etnicidade, de nações e dos problemas que levanta a vida em sociedade em qualquer parte do mundo”.

Considerado como o divulgador mais eficaz da história e da arqueologia africanas fora de África e certamente o mais ilustre conhecedor da África negra, as obras de Davidson são de leitura obrigatória nos meios universitários da Grã-Bretanha, de África e dos EUA, pena é que as editoras e o público em geral hoje o ignorem.
Há que confessar que a leitura deste documento exige muita atenção, o leitor é forçado a reapreciações, a ter de parar e regressar ao ponto de partida. Davidson parte da profunda perturbação africana, da sua assustadora degradação ambiental (cidades anárquicas, florestas tropicais engolidas pela ganância exportadora, apodrecimento de infraestruturas…), da quase total indiferença na participação popular e pergunta: onde é que os libertadores erraram, qual a origem da crise das instituições? E remete-nos para os caminhos percorridos pela generalidade destes Estados que emergiram da partilha colonial. Lembra-nos que o que se apregoa como tribalismo não é mais, em grande número de casos, de que um clientelismo que cerca o alto dirigente político, a sua caução à corrupção dentro de redes pessoais e familiares, o suborno das forças militares e paramilitares para os manter como zelosas guardas pretorianas do regime.
Numa tentativa de encontrar analogia na vida difícil que leva os Estado-nação africano pós-colonial com outras situações, Davidson recorda que a Europa Central e Oriental viveu o mesmo tipo de ebulição quando nasceu a consciência de Estado-nação e começou a germinar o ideal da separação dos grandes impérios, como o austro-húngaro e o turco. Recorde igualmente que a história de África, no essencial, está circunscrita ao que os investigadores coloniais e pós-coloniais escreveram. Em momentos-chave do século XIX, chegaram escravos emancipados à costa ocidental africana e ocuparam a Libéria e a Serra Leoa. Muitos séculos atrás, os seus ancestrais teriam vindo do que são hoje o Gana, a Costa do Marfim e a Nigéria. O que é importante registar é que estes escravos livres montaram sociedades à luz do que conheciam da vida americana, instituíram um género de melodrama trágico agindo como uma pequena burguesia nacionalista, copiando os tiques, as instituições e até o estilo de vida que se praticava nas colónias britânicas e francesas.
Era tal a preocupação destas elites de homens instruídos e civilizados em criar Estados-nações segundo o modelo europeu que se desvincularam do passado da África negra. Estas elites tinham noção de que os europeus não queriam servir às ordens dos africanos e cientes dessa segregação apostaram numa imagem de civilização baseada num nacionalismo intransigente.
Este apontamento é indispensável para entender as promessas que os independentistas traziam para África na época da descolonização (portanto a partir de 1950), como prometiam criar participação popular e sociedades mais igualitárias e como, de um modo geral, falharam rotundamente.
Davidson procede ao estudo do Gana, analisa a sua história profunda e deixa claro que o desprezo que a nova classe política manifestou pelas instituições ancestrais cavou a sua própria ruína.
Ora a história do tribalismo pré-colonial era uma história de nacionalismo. Davidson esboça a história de África desde aproximadamente 6000 A.C. e evidencia as sociedades governadas de forma autónoma que foram amesquinhadas pelas potências coloniais e escreve: “Para a maioria dos viajantes e observadores ocasionais estrangeiros, África parecia viver numa situação malévola de caos. Após 1850, os viajantes e os observadores da África oriental começaram a entrar em terras assoladas por um comércio de escravos relativamente recente; e descobriram, desde a costa suaíli em direção a ocidente, até aos Grandes Lagos, ou desde a parte do Sudão em direção a sul, até Moçambique, provas terríveis da morte e da devastação causadas por este comércio de escravos. Os viajantes em outras partes de África, especialmente na África ocidental, não descobriram uma situação idêntica, mas encontraram sociedades que tinham sido devastadas muito antes pela mesma maldição da escravatura”.
O comércio de escravos subverteu hierarquias, derrubou culturas, cimentou ódios entre tribos, pois umas negociavam com seres humanos que eram capturados nas razias. Outra leitura importante sobre a inexistência do continente africano na vida cultural europeia passa pelo total desinteresse das classes intelectuais sobre a própria história de África. Ibne Caldune, o grande historiador do norte de África de finais do século XIV, fala das dinastias reinantes no Magrebe, como os Almorávidas, Almóadas e Afidas e como constituíam uma extensa linha entre a Tunísia e o Egipto. Mas a sul havia formações estatais enormes como os Soninké no Gana, os Malinké no Mali, os Songhay no Songhay e os Kanuri em Kanem, e cada um deles era capaz, tais como os normandos ou os germanos, de dominar uma vasta área e dispor de impostos e vassalagem. Existiu o imperador do Mali e a história de África acusa convulsões ao longo dos séculos da Idade Média e da Idade Moderna do mesmo tipo que as guerras europeias do mesmo período. Mas deu muito jeito, no período colonial, ter criado a doutrina de civilizar o gentio, dar civilização ao preto, ensinar-lhe a ler e escrever e a ter bons modos.
Davidson confronta o tribalismo e o novo nacionalismo para afirmar que os novos nacionalistas da década de 1950 acabaram por abraçar o nacionalismo como única fuga possível à soberania colonial: “Esforçando-se por transformar os territórios coloniais em territórios nacionais, acabaram por considerar que a riqueza das culturas étnicas africanas era ao mesmo tempo perturbadora e difícil de incorporar devido aos seus esquemas. Vieram a cair novamente na mentalidade colonial que considerava esta riqueza como tribalismo e, como tal, retrógrada”.
Mais uma vez estas formações políticas pré-coloniais que eram comunidades com passado venerável foram amesquinhadas. As elites instruídas na África ocidental encaravam a história de África como irrelevante e inútil. As elites independentistas, ansiosas por ser livrar da administração colonial socorreram-se do estado-nacionalismo baseado no modelo europeu e assim prepararam o seu fracasso.
Mais adiante, o escritor repertoria a ascensão do Estado-nação na Europa para fazer compreender como é que os ativistas da década de 1950 mergulharam no nacionalismo, considerando-o como única garantia disponível de um caminho aberto ao progresso. Os anos 1960 são de euforia e já de deceção: as populações não acompanham a argumentação dos líderes políticos. E as estratégias neocoloniais, a caça às matérias-primas, vão suscitar o apadrinhamento de piratas e corruptos que vão tomar conta do poder. Davidson fala de Amílcar Cabral como personalidade singular que acreditava piamente na ascensão dos camponeses e na sua participação, criticava publicamente a ganância das oligarquias e os apetites pequeno-burgueses de certos dirigentes.
Na conclusão, Davidson assevera que o Estado-nação pós-colonial se tornara um obstáculo ao progresso; recorda a determinante cultural de Amílcar Cabral, as lutas sanguinárias que assolaram o continente também devido à Guerra Fria e apela a que África invente um futuro pós-imperialista, com o desmantelamento gradual da herança estado-nacionalista resultante do imperialismo e à introdução de estruturas participativas no seio de uma vasta estrutura regional.
Em síntese, um clássico que devia ser oferecido a todos os políticos e quadros militares de qualquer Estado africano. Um livro que devia fazer parte dos currículos escolares desses mesmos Estados africanos.
Mário Beja Santos