Quarta-feira, Outubro 4, 2023
InícioLeiturasLeituras inextinguíveis (101): “Nó Cego”, a obra-prima absoluta da nossa literatura de...
banner-epvt

Leituras inextinguíveis (101): “Nó Cego”, a obra-prima absoluta da nossa literatura de guerra colonial

banner-complexo-aquático

A ação que envolve esta companhia de comandos, omnipresente em toda a trama do romance, passa-se em Moçambique, mas, com ligeiras adaptações, podia ser transferida para qualquer teatro de operações em África, tal o classicismo com que a prosa se impôs, desde o calão de caserna à violência e brutalidade no teatro de operações. Tendo primeira edição em 1982, Nó Cego, de Carlos Vale Ferraz (a mais recente edição é de 2018, publicada pela Porto Editora), é muito mais do que um livro irrepetível, continuamos a lê-lo em transe hipnótico, a soletrar a crueza dos diálogos que os combatentes ouviram ou participaram há cerca de meio século, o que ali se escreve, o peso dos silêncios, os gemidos dos feridos, a língua encarquilhada pela sede, foi vivido por centenas de milhares de combatentes, brancos e nativos que pisaram o palco da guerra, neste emaranhado das matas, neste ambiente de aquartelamentos, e que viveram em lugares ermos, o maior alívio era a chegada de correio dos entes queridos.

Carlos vale ferraz
Carlos Vale Ferraz

Foi uma obra de estreia de um oficial do quadro permanente que combateu nos três teatros de operações. Não importa o que de autobiográfico o livro contém, é pouco crível que tudo quanto aqui se escreve seja fruto da pura imaginação, ou contado por outros que o autor ouviu e soube transferir para toda esta roleta russa da vida destes jovens, cuja alma vai ser desnudada, em muitos casos em carne viva. Este romance continua a ser o número um, detém a supremacia absoluta de todas as obras de grande qualidade. Nenhum outro das muitas centenas que se escreveram lhe faz sombra, ele vai ao fundo da raiva e do medo, contornando sempre com pudor a linha do intimismo mesmo no trânsito abundante dos termos chocantes, da exibição das misérias, nas manifestações daquele cansaço sem fim que se vai apoderando do narrador e que é transmitido como um vírus ao leitor.

O classicismo de “Nó Cego” assenta porventura na magia da comunicação: é tudo limpo, sóbrio, brusco, eficiente, apologético (toda a arquitetura impele-nos para o horror da guerra e, sobretudo, para a perda de sentido daquela guerra em particular). Vale Ferraz não se subtrai aos desastres da guerra, ao princípio as lágrimas são ausentes, mesmo quando se perde um pé numa mina antipessoal ou o militar procura suster aqueles intestinos num corpo esquartejado.  Fica esclarecido que aquela companhia de comandos tem as suas normas próprias, os seus ritos e uma cadeia de comando muito particular, o seu capitão (por hipótese, o autor deste soberbo romance) procura a todo o transe ter aquela família militar em estado de coesão.

Atenda-se à dedicatória: dedicado às mulheres que os amaram, aos que combateram dando o melhor da juventude, dedicado também aos guerrilheiros. O autor entende que precisamos de um esclarecimento prévio: o que ele escreve é ficção, as pessoas e situações narradas não aconteceram nem existiram; o autor, por sinal, é pacato e gordo, cai-lhe o cabelo e escreve de noite com os óculos na ponta do nariz. É tudo malabarismo, a obra culmina na operação Nó Górdio, existe Mueda, o planalto dos Macondes, o autor simula um distanciamento que nunca existiu.

Abre-se a efabulação, estamos na primeira operação, com o sol a pino e todos a marchar na bicha de pirilau. Ouve-se uma explosão, o capitão orientou os grupos de combate, o enfermeiro partiu para os primeiros socorros:

Dava as ordens com voz calma, como se tudo não passasse de um exercício. Depois aproximou-se do soldado ferido deitado no chão, com um dos pés transformado numa bola de massa onde se misturavam o coiro preto da bota, a terra castanha empapada em sangue e de onde surgiam tendões brancos desligados dos ossos.

À vista deste espetáculo empalideceu, não o podia evitar, sentou-se a observar o LM: uma injeção de morfina, apertar o garrote para estancar o sangue, uma injeção de vitamina K para facilitar a coagulação e, por fim, limpar o melhor possível a pasta avermelhada para a envolver num penso. Era o que restava do que fora um pé”.

Não se pode imaginar mais secura, incisão, logo a seguir há um contacto, as transmissões procuram desesperadamente um helicóptero. Os figurantes vão sendo apresentados: o cabo Cabral, o da calva nascente, o Pedro, que vai sempre à frente e que ficará sem o pé, o Vergas, alto e patilhudo, o Torrão (que fora pastor no Alentejo), o Chamusca, o Casal Ventoso, o Espanhol, mas há mais, os quatro alferes estão habilmente burilados. Existem ali conversas possíveis, afinal aquelas máquinas de matar têm sentimentos, basta conferir: “O meu capitão sabe que é raro um alentejano vir para os comandos? – e continuou: – Gozavam comigo por eu ser assim miúdo, chamavam-me alentejano dum cabrão, mesmo os oficiais e os cabos milicianos da recruta, que alentejanos e cães de caça era tudo gente de uma raça. Para lhes fazer ver que era igual aos outros, ofereci-me. Também porque me disseram que se dava menos tempo de tropa… preciso de tratar da vida… – o capitão parecia não ligar muito à conversa, mas o Torrão continuava: – O Alentejo, conhece? –e sem esperar resposta: – Aquilo é que é terra, o ar é limpo, vê-se até longi… – falava sem precisar de ouvinte. Necessitava de desabafar, de se sentir no meio de gente, a floresta assustava-o e voltava ao linguarejar cantado da sua terra – … Guardava porcos, um dia fiquei-me a ver o comboio a caminho do Algarvi, por causa dêli tive de fugir de casa, dois bácoros perderam-se, o capataz do monti queria bater-mi, queria obrigar o mê pai a pagá-los, pagar… – abanou a cabeça a olhar o céu – … Era a miséria mais negra…”. Contraponto é dado pela recordação daquele oficial que quis ir para a Academia Militar, mesmo contrariando a vontade do pai.

Segue-se a brutalidade com o guia que os acompanha nessa operação, um velho Maconde, permanentemente ameaçado pela tortura e de que ainda vai levar mais porrada na PIDE. A galeria dos figurantes vai engrossando: Evaristo, o guia Maconde, agora a companhia atravessa um vale, são surpreendidos pelas morteiradas do inimigo, o Preguiça ficou despedaçado, caiu-lhe uma granada mesmo em cima. Igualmente os alferes vão sendo apresentados, são provenientes de vários estratos sociais, o Lencastre vem de uma família com pergaminhos, entre Estoril e Cascais. Bem, a operação não foi um êxito e o novo comandante militar a seu tempo irá repontar. Chega a hora desta companhia de comandos ir para nova operação, desta vez à Volta ao Mundo, temos aqui outra narrativa fulgurante: “Mueda, no dia da saída da coluna para a Volta ao Mundo, assemelhava-se a um formigueiro rebentado; camiões que andavam de um lado para o outro aparentemente sem sentido, soldados que corriam uns pelos outros, oficiais que procuravam juntar os seus pelotões, artilheiros que tentavam desesperadamente atrelar as peças e bocas-de-fogo às Berliets, caixas de rações espalhadas, viaturas que não pegavam e eram empurradas, barulho de motores acelerados, cheiro a óleo queimado, tudo fazia parte de uma caótica confusão da qual parecia ser impossível sair ou, pelo menos, encontrar algum responsável”. Estão de novo embrenhados no mato, ouvem-se gritos na calada da noite, é de ficar com a pele eriçada, há um sargento que ao desmontar uma mina ficará cedo, um soldado terá um ataque de epilepsia, e naquela penosa caminhada que o capitão conduzia propositadamente a passo de caracol pela picada, porque se sabia que as minhas sabiam como cogumelos em estrume húmido.

Pois bem, um pequeno desvio nesta conversa, o que verdadeiramente é insuperável na narrativa vivida no planalto dos Macondes é a gradual visão desencantada da guerra, pelo punho do capitão (repito, autobiografia?) e a exposição sem tréguas de um impressionante cortejo de figurantes plasmados num romance que não se confinam a quartéis e picadas, pois há também a Ilha de Moçambique, local onde os guerreiros fazem uma pausa antes de regressar às brutais lides bélicas, nesse tempo de vilegiatura ficamos a conhecer o estado de espírito dos colonos de vários matizes, apoderou-se deles o medo que procuram vencer através da derrisão e de várias bacanais, outro olhar sobre a decomposição, no fim do Império.

Mas voltemos à trama do livro, na última operação morrera o Bento de quem o Cardoso guardou uma pequena harmónica. Aquela operação, percetivelmente, mudara muita coisa, por exemplo o alferes Lino, um antigo seminarista, tomara o gosto pela guerra, na sua vertente da morte e do mando. Numa emboscada, tinham sido abatidos dois guerrilheiros e capturadas duas espingardas Simonov. Há um militar que anda furioso porque o capitão lhe proibira de cortar orelhas aos mortos. E vamos verificar como as relações entre o capitão e os seus superiores andam ao ritmo de um carrossel. O novo tenente-coronel repreende o capitão, a missão não fora integralmente cumprida, grita encolerizado: “Não admito indisciplinas destas, as ordens são para cumprir até ao fim, até ao minuto, os itinerários para serem seguidos. Vocês não estão habituados a serem comandados, mas eu habituo-os! Porque não falou pela rádio de duas em duas horas como foi determinado? Não admito repetições destas iniciativas, a guerra que vamos fazer é uma coisa séria, cada um tem o seu lugar e a sua missão, resta-lhe cumprir, para pensar e para planear existem os órgãos competentes. Percebeu?”. Aquele oficial nunca entenderá a vida de relação daquela companhia, o Espanhol, o Cardoso, o Fernandes, o Lencastre, o Freixo, o Vergas, e como todos eles já não podiam esconder o cansaço de tanta saída constante. Na operação seguinte, uma surtida acaba numa matança de que sobrevive uma criança. Vejamos o vigor e a secura da descrição:

O grupo que fez a batida às imediações voltou trazendo uma criança de dois, três, quatro anos, vá-se lá saber, nu, a barriga inchada em balão, quase a rebentar pelo umbigo saliente, a pele acobreada denunciando misturas de raças, os grandes olhos a brilharam como os do leão, inteligentes, sem lágrimas.

– Que lhe fazemos? Levamo-lo? – perguntou o Fernandes com a criança à ilharga. – Estava escondido perto da mãe morta.

O Lopes saiu do seu lugar e sem pedir licença pegou nele, escanchou-o em cima do pescoço e carregou-o para a viagem de regresso a M.

Passou a tratá-lo como filho e a companhia considerou-o sua mascote. Vestiram-no, fardaram-no de camuflado, deram-lhe um nome: Alfredo, ensinaram-no a fazer continência militar, averbaram-lhe um posto: alferes dos comandos.

O capitão vai a Nampula, segue-se uma orgia numa casa de meninas, é uma descrição hilariante. O capitão regressa com boas notícias, e volta às suas funções de “empresário de circo”, expressão dele. Sempre que necessário, Vale Ferraz usa a técnica do solilóquio tanto para o primeiro-sargento, como para o Casal Ventoso ou o Lencastre, é também graças a este antiquíssimo expediente literário que vamos identificando as categorias sociais, as aspirações estatutárias, vamo-nos apercebendo como se está a fazer a identificação da gente do nosso país, é um primor de escrita.

E estamos chegados à Operação Nó Cego, o suprassumo da vaidade do comandante-chefe que sonha juntar Moçambique às potências racistas da África austral. O importante agora é percorrer de lés a lés o planalto dos Macondes, devassar as suas bases, mostrá-las na televisão e gritar ao mundo que a Frelimo entrou no estertor. É um momento fulcral da obra, a partir de Mueda junta-se a companhia de comandos acabada de voltar de um mês de descanso, paraquedistas, fuzileiros, milícias transformadas em grupos especiais, soldados de cavalaria dos esquadrões de reconhecimento e a tropa macaca constituída por todos os indiferenciados. O capitão e o seu “circo” vão ser recebidos à metralha em bases temporariamente abandonadas, é uma espiral de horror, a brutalidade a espirrar para todos os lados. A fama daquela companhia não era muito boa, falava-se mesmo na sua dissolução. A todo o custo, o capitão quer chegar à base Gungunhana, há depois a base Alfa. Haverá corpos dilacerados, pessoas aparentemente serenas e equilibradas vão transformar-se em pequenos monstros, um medroso será equiparado a herói para efeitos da folha de serviços de um tenente-coronel, não vão faltar violações brutais onde até Lino, o tal antigo seminarista, revela a sua bestialidade, todos os ingredientes desse mesmo circo vão aflorar na trepidação do Nó Cego: o medo puro, mais do que visceral, o soldado a rebolar com os intestinos à mostra misturados com terra, o recurso à “erva” numa tentativa de ver surgir um bom sonho, a captura do comissário Alberto Chinavane que indica o caminho da base e os avisa para a reação que os espera. A base Alfa é o acampamento de que todos os combatentes guardam recordação: parecia-lhes irreal, um cenário de papelão, uma vala de mais de um metro servia de trincheira e de vedação, como se descreve:

O capitão foi sentar-se na barraca que deveria ter sido do comandante e manteve-se a olhar os seus soldados, parecia muito mais velho e enrugado, mandou que lhe trouxessem os papéis e os livros encontrados, passou os olhos por eles, demorou-os nas citações do Livro Vermelho do Mao. Depois, observou à sua volta, a base estava taticamente bem instalada, no interior do vale, com bons itinerários de retirada, elevações para a vigilância e proteção, cercada de pequenos aldeamentos funcionando como campainhas de alarme; e passaram um curso inteiro na Academia Militar a estudar que se deviam procurar os pontos altos e isolados, as posições defensivas! Naquela guerra tudo era diferente… como haveria algum dia os generais e os Estados-Maiores perceber alguma coisa dela?”.

A base será tomada, o general exibirá a sua vaidade mostrando-a às televisões, na véspera à noite os guerrilheiros da Frelimo devastaram-na provocando mais baixas na companhia. Toda aquela noite será horrível, com revelações de homens famintos de ternura e outros que procurarão matar quem odeiam e praticar o suicídio.

Nó Cego” é a grande metáfora da guerra colonial. Este capitão dos comandos, de que nunca saberemos o nome, dá-nos o retrato acabado do reconhecimento que a aquela guerra colonial caminhara para um beco sem saída.

Na revista Colóquio/Letras, número de novembro de 1983, o escritor João de Melo terminava a sua recensão de Nó Cego da seguinte maneira: ”Nó Cego é, de facto, um livro profundamente assumido. Um dos grandes romances de 1982, sem dúvida, mas à espera de ser redescoberto em toda a sua dimensão”.

Hoje já se sabe que não precisa de ser descoberto, ganhou todas as credenciais do que é insuperável em literatura.

Mário Beja Santos

Receba a newsletter com as notícias do Ribatejo

Não enviamos spam! Leia a nossa política de privacidade para mais informações.

Mário Beja Santos
Mário Beja Santos
Toda a sua vida profissional, entre 1974 e 2012, esteve orientada para a política dos consumidores. Além da atividade funcional, foi representante associativo, tendo exercido funções no Comité Consultivo dos Consumidores, na Comissão Europeia, e na direção da Associação Europeia de Consumidores. Foi autor de programas televisivos e radiofónicos, bem como de dezenas de trabalhos no campo específico do consumo. Ao nível da sua participação cívica e associativa, mantém-se ligado à problemática dos direitos dos doentes e da literacia em saúde, domínio onde já escreveu algumas obras orientadas para o diálogo dos utentes de saúde com os respetivos profissionais, a saber Quem mexeu no meu comprimido?, 2009, e Tens bom remédio, 2013. Doente mas Previdente, dá continuidade a esta esfera de preocupações sobre a informação em saúde, capacitação do doente, o diálogo entre os profissionais de saúde, os utentes e os doentes. Colabora frequentemente com a imprensa regional e blogues, e exerce benevolato com associações de consumidores, como seu representante. Desde 2006 que se dedica igualmente a estudos sobre a colónia da Guiné portuguesa e a vida política na Guiné-Bissau, temas sobre os quais publicou uma dezena de livros.
Também pode ler

Deixe o seu comentário

por favor, escreva o seu comentário
Por favor, escreva aqui o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Artigos recentes

banner-união-freguesias-cidade-santarem

Comentários recentes

cartaz-aviso-vespa-velutina-almeirim
pubspot_img
Fechar