Quarta-feira, Novembro 29, 2023
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Cosmos – a editora que o fascismo odiava

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Está uma manhã cristalina na vila operária da Marinha Grande. Daqui a pouco as estradas encher-se-ão de centenas de ciclistas, homens e mulheres, das dezenas de fábricas do vidro, que saem para o almoço. Este homem que aqui vai, na direção da Livraria 18 de janeiro, a norte da Praça Stephens, cabelos brancos compridos, passo carregado e ar digno, é um velho anarquista do tempo da primeira revolta operária contra Salazar em 1934, data e acontecimento que esta livraria perpétua. Nas montras da vila, expostas ao sol primaveril, os transparentes, vidros e cristais de variados matizes, emitem reflexos coloridos, intensos, que atraem alguns passantes e gente menos apressada que depois entra nos cafés ou fica à conversa nas ruas animadas, nesta hora da manhã que já vai alta. O velho entra na livraria. Lá dentro, cumprimenta o empregado no balcão e dirige-me uma saudação, típica nele, soerguendo de leve o punho cerrado. Vem comprar o jornal e ver as novidades literárias. É um leitor culto e selectivo, muito dos anarquistas russos e livros da Biblioteca Cosmos, secção famosa da não menos famosa e histórica Edições Cosmos, orientada a certa altura por Bento de Jesus Caraça, Manuel Mendes etc. e outros notáveis das letras nacionais. Conheceu-os todos, estes e outros da época, e com alguns conviveu nas prisões fascistas, Aljube, Peniche, Tarrafal, após o desaire da revolução de 18 de janeiro de 1934, em que participou. « Vocês, os de agora, julgam saber tudo sobre o 18 de janeiro e pensam que a revolta foi só aqui na Marinha Grande, mas não foi. Alastrou pelo país, em especial Almada e Barreiro, jornalistas de Lisboa, Coimbra etc. etc.» disse-me, da primeira vez em que falámos sobre o significado daquela data, impressa na fachada da livraria, no contexto da luta antifascista nacional. «Aqui na Marinha Grande, que era a parte principal, falhou por que anarquistas e comunistas não se entenderam nos meios para derrubar o fascismo e no combate a sério a desenvolver para tal. A maior parte dos operários vidreiros estava mal armada ou sem arma nenhuma, e os que tinham espingarda ou estava enferrujada ou era do tempo do Canhoto! Quando o batalhão bem armado da GNR, mauser, metralhadora, punhais para encabar nas espingardas se fosse preciso, granadas, cães de fila, gases e trinta por uma linha, nos cercou, prontos a mandar prò maneta os que resistissem, a maioria, sem hipóteses de defesa, a pensar na família e nos filhos com fome, rendeu-se. Os restantes e eu próprio, acabadas as munições, daí a pouco, seguimos o exemplo deles. No fim, combatentes ou simples agitadores, aqui e no restante país, foi tudo preso às ordens de Salazar. Nos meses seguintes, até ao fim desse ano de 34, não cessaram as detenções de intelectuais, jornalistas, escritores, operários e líderes políticos mais ou menos envolvidos na revolta. No final, foram centenas os deportados e presos, para exemplo. Hoje ninguém os lembra, excluídos da história canónica!».

capa livro quatro anos deportacao castelhano

«Você, segundo julgo saber, foi nessa altura, mandado para o Tarrafal?» – interroguei, enquanto ele examinava os livros. « Sim, mas fiz o pleno, Aljube, Peniche, só depois entrei no Tarrafal, onde já estavam o Bento Gonçalves e muitos camaradas dele e meus, muito bem acomodados por sinal em particular o Bento que não resistiu àquele horror todo e à malária, apesar de ser um valente. Só não sei como é que, até agora, também ainda não acordei morto! Ah! Ah! E trata-me por tu que um dia destes vi-te a ler A Batalha além no café da esquina!» – acrescentou arguto e risonho, aludindo ao jornal anarquista do Emídio Santana que eu assinava a título particular, mas que não constava, por ordens superiores – e ele sabia-o – do espólio da 18 de janeiro. Isto, enquanto continuava a inspeccionar a estante das obras das Edições Cosmos, Seara-Nova, Iniciativas Editoriais, Editorial Inova etc. «Ainda há outros anarquistas cá na Marinha Grande, daquele tempo, como tu?» – atrevi-me, usando a segunda pessoa, para comprazer com a honra que um velho anarquista, marcado pela tortura e as mais tenebrosas prisões fascistas, dava a um jovem imaturo que oscilava entre a doutrina estética de Plekhanov e as obras libertárias de Kropotkin, em tratá-lo por tu. «Tirando eu, e dois que se passaram prò Cunhal, está tudo a fazer tijolo… Eh pá, tens aqui o livro do Mário Castelhano?, milagre! O Comité Central se souber disto, estás feito ao bife!». E pousou no balcão o Quatro Anos de Deportação, do anarco-sindicalista Mário Castelhano, edição Seara-Nova de 1975 «Conheci o Mário no Tarrafal, onde morreu. Foi preso na altura da revolta do 18 de janeiro e morreu lá em 1940. Um gajo duro que sofreu muito pelas ideias que tinha e a liberdade que achava que deviamos ter. Acho que o condecoram há poucos anos com a Ordem da Liberdade ou não sei quê. Merecida, mas que já não lhe deve interessar transformado na terra onde está. Este livro sim, devia ser lido por quantos queiram saber por dentro o que foi a luta contra Salazar e os jesuítas, que o ditador também era e foi com quem se formou em Coimbra, nos primeiros anos do fascismo, os mais duros de todos. A maioria dos empresários de Abril hoje, grande parte que colaborou com o Estado Novo antes da conversão à democracia por razões salariais, e nem sonham o que foi ser revolucionário a sério antes desse Estado cair de podre, deviam sobretudo lê-lo como documento humano de coragem e valentia sem quartel. Tenho-o para lá não sei onde, mas vou comprar este para ler de novo e oferecer depois a um dos meus antigos camaradas que trocaram o sonho libertário da humanidade, livre de mitos falsos, estados totalitários e ditadores, pela liberdade de oprimir os outros como fazem hoje os traidores oficiais na União Soviética e os revisionistas de Marx por todo o lado, imitando Estaline» – concluiu, um pouco emocionado.

Monumento na Marinha Grande à revolta de 18 janeiro de 1934
Monumento na Marinha Grande à revolta de 18 janeiro de 1934

«Apesar das divergências políticas e ideológicas tive grandes amizades com muitos comunistas. Além do Bento Gonçalves, no Tarrafal, estive com o Militão Ribeiro e o Sérgio Vilarigues na prisão da Ilha Terceira» – elucidou, com um leve sorriso. « Mas um dos maiores, que conspirou connosco anarquistas no 18 de janeiro de 1934, foi o líder da Juventude Comunista, e depois fundador das Edições Cosmos e destes livros da Biblioteca Cosmos, que tens aqui, que é o Manuel Rodrigues de Oliveira. O Manuel era na altura, além de comunista, jornalista do «Século». No rescaldo dos acontecimentos aqui na Marinha Grande, foram lá prendê-lo levando-o para o Aljube. Daí, passou para Peniche onde o encontrei, donde, após uma revolta que lá fizemos por melhores condições, fomos transferidos para a prisão de Angra e daí, mais tarde, para já inaugurado Tarrafal, juntando-nos ao Bento e ao Mário Castelhano, que lá viriam a morrer. Libertos, eu e o Manuel Rodrigues de Oliveira em 1938, já não assistimos à morte dolorosa do Mário Castelhano em 1940, e do Bento Gonçalves em 42. Lembro-me do Manuel mais tarde me dizer que houve na sua vida dois Bentos fundamentais: O Bento Gonçalves que lhe deu a ideia das Edições Cosmos, e o Bento de Jesus Caraça, o qual, por recomendação do primeiro, o ajudou a erguer e firmar a Biblioteca Cosmos. Os pais do Manuel eram de Constância, terra de que ele falava muito por se dizer que Camões lá estivera desterrado. Talvez viesse daí o gosto que tinha pelos poetas em particular pelo Manuel da Fonseca, que está agora a ser editado pela Caminho, e julgo que tens ali alguns livros dele, mas que começou com uns Poemas Completos editados por ele.

Manuel Rodrigues de Oliveira
Manuel Rodrigues de Oliveira, Fundador das Edições Cosmos

«Quando o Bento de Jesus Caraça, que já tinha editado na Cosmos alguns livros importantes morreu, aí por volta de 48, o Manuel pediu ajuda e ajudou alguns dos maiores nomes da cultura nacional: lembro-me do Fernando Lopes Graça, que estava no desemprego por ordem de Salazar, que publicou na Cosmos meia dúzia de livros em nome próprio e um Dicionário da Música com o Tomás Borba, que o ajudou a sobreviver nessa altura. Outra gente ilustre do reviralho que se reunia na sede da editora em Lisboa, ou colaborava nas edições, foram o Abel Salazar, o Adolfo Casais Monteiro, o Agostinho da Silva, o Rodrigues Lapa, a Irene Lisboa, o Manuel Mendes e o compadre dele o nosso Mário Soares ainda na fase comunista, o Luís de Freitas Branco, o Magalhães Godinho e tantos outros dos maiores nomes nacionais da cultura, de ideologias diversas mas unidos na oposição a Salazar. Vá manda embrulhar-me aí o livro do Castelhano que ainda tenho que ir acolá ao mercado comprar uma pescada para o almoço e faz-se tarde!» – e olhando, de forma conspirativa em redor a certificar-se de que não era ouvido: « Então andas a ler A Batalha na clandestinidade…Acho que irei morrer mais tranquilo. Ainda há esperança de não ter vivido em vão!

Morreu daí a pouco tempo este velho anarquista da Marinha Grande, o último lá que colaborou no 18 de janeiro, e na história nacional, escrita pelos vencedores, esquecida, do último quartel do século dezanove a meados do século seguinte. O fundador das Edições Cosmos – e já agora da Europa-América com os manos Lyon de Castro – , Manuel Rodrigues de Oliveira, viria a morrer num dia quente de julho de 1996 numa cama do hospital de Santa Maria após um queda grave. No leito de morte, pediu ao filho Francisco os Poemas Completos do Manuel da Fonseca, e passou uma noite a lê-los em voz alta «não deixando dormir ninguém», segundo disse ao filho, no dia seguinte, uma enfermeira.

Joaquim Garrido- Edições Cosmos
Joaquim Garrido- Edições Cosmos

O meu ilustre amigo e editor Joaquim Garrido, foi quem, há mais de vinte anos, resgatou da morte certa as Edições Cosmos, cuja vem engrandecendo com novas autores, dentro do possível, no país que menos lê na Europa, fruto de quinhentos anos de perseguição à cultura e à liberdade espiritual, primeiro pela Inquisição, depois pelas várias polícias da monarquia e da ditadura de Salazar, e hoje pela concorrência dos mais diversos espectáculos de massas, televisões, electrónica, e agora o digital. Em qualquer outro país dessa Europa culta, mesmo na vizinha Espanha, onde os livros ainda ocupam um lugar importante na vida de grandes grupos culturais activos, ter resgatado do desaparecimento anunciado, com sucedeu a tantas outras, a uma das mais históricas, e corajosas contra o fascismo, editoras nacionais, seria louvado, todavia em Portugal parece ser pouco importante. Isto ou caçar gambozinos vem a dar no mesmo! Já se ao menos, para além das dificuldades naturais em ser editor probo neste quintalório pouco dado a coisas impressas, que não sejam notas de banco, cheio de oportunistas com jeito prò engodo de passarem por cultos sendo antes uns asnáticos chico-espertos, não fosse a gente honrada perseguida e, por inveja, alvo da maledicência de tal fauna, ainda vá que não vá. Mas nem isso, como sabe o Joaquim Garrido, e antes dele soube o tantas vezes preso Manuel Rodrigues de Oliveira; e antes deste Bocage e os arcádicos perseguidos por Pina Manique e os inquisidores de serviço; e antes destes Francisco Manuel de Melo, o dos Apólogos Dialogais, metido largos anos a ferros nas prisões do reino por escrever verdades amargas; e antes deste as centenas de edições dos Clássicos revistas e condenadas pelos censores da Inquisição; e antes destas Camões que para os dominicanos deixarem editar o Poema Nacional foi preciso deixar primeiro o censor, frade Bartolomeu Ferreira, emendá-lo convencendo-o de que o livro atacava os jesuítas que eles não gramavam; e antes destes Afonso Henriques, que teve de correr de cá com o representante do Papa que quis logo controlar este pobre reino recém-nascido, e ainda hoje, mais de oito séculos depois, o primeiro ministro lá foi confessar-se e o Presidente amiúde lhe vai beijar o anel de joelhos, a este que não é mau e a outro qualquer que fosse. Portugal é isto, os livros e a cultura em Portugal sempre foram isto, e contra isto batatas. Mesmo assim é para mim uma honra ter sido editado por uma das editoras mais prestigiantes e históricas deste país. Honra que por certo terá sentido a historiadora, recentemente falecida, Alice Lázaro, autora do livro «Santarém no Portugal antigo e Moderno do Pinho Leal». Honra que Aurélio Lopes, o antropólogo do Vale de Santarém, já com vários livros com a chancela da Cosmos, sentirá de novo, no próximo sábado 7 de outubro no lançamento de mais uma obra sua na Casa do Brasil em Santarém, a que o leitor poderá assistir se lá for e isso, numa editora quase com um século e uma plêiade de tão distintos autores que a enobrecem com o seu nome, será também, para além do livro em si, um facto histórico. Somos, os que hoje têm a sorte de serem escolhidos para fazerem parte das Edições Cosmos, uns pigmeus aos ombros de gigantes, como diz o outro que não foi o primeiro a dizê-lo, mas somos também, com o corajoso e abnegado editor Joaquim Garrido, a garantia da sobrevivência de uma das editoras fundamentais na luta cultural contra o fascismo neste país, e da sobrevivência, no seu antigo fundo editorial, de alguns dos nomes mais gloriosos de Portugal. Bem haja o nosso amigo Joaquim Garrido por esta coragem e serviço cultural à nação e, como se dizia naqueles velhos tempos épicos das utopias perdidas, fraternidade e humanismo, em que ambos convictos, um dia participamos: a luta continua e a vitória é certa!

Mário Rui Silvestre

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Mário Silvestre
Mário Silvestre
Romancista, poeta, historiógrafo. Enquanto presidente da C.L.A.P.A, uma das Associações Ecológicas pioneiras do país, escreveu o livro de contos «Do Rio À Margem». Seguiram-se os romances «Para A Morte Não Ter Razão»; a «Calma Declinava». Na Poesia, destacam-se «Caosmologia», com prefácio de Vasco Graça Moura, «Poemas do Centenário» e «Ribaterra». Com chancela da Fundação Comendador José Gonçalves Pereira, editou várias obras historiográficas, salientando-se «As Gloriosas Máquinas do Pão», acerca dos milenares moinhos d'água do Alviela; e em 2022 O Rio que Lisboa Bebeu, sobre o rio Alviela que abasteceu Lisboa durante um século. Fez parte da Comissão de Honra da «Associação Mais Saramago», e foi responsável por várias livrarias no país da C.D.L (Central Distribuidora Livreira). Ganhou o Prémio Literatura de Viagens, do jornal em espanhol «Novedades de Moscou», e outros em concursos literários diversos. No Ensaio, com chancela da Câmara Municipal de Santarém, e apoio da Comissão Nacional dos Descobrimentos, publicou «Em Torno de Camões», com factos inéditos sobre a vida e obra do Poeta maior da portugalidade, entre outros.
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