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História das rebeliões (não revoluções) medievais (1) – por Carlos Macedo

Wat Tyler

ANTECEDENTES DA REVOLTA

Em primeiro lugar, “The Rising” – em que John Ball teve um papel pelo menos idêntico ao de Wat Tyler (“JOHN BALL HATH RUNGEN YOUR BELL!” era a “palavra de ordem” da revolta), foi desencadeada, sobretudo, pela brutalidade inesperada de uma nova capitação (“Poll-Tax”, abrangendo até os assalariados rurais mais pobres, sob pretexto da guerra) e tendo como “matéria-prima”, mais ou menos consciente do seu papel, o campesinato e a burguesia das vilas do sudeste de Inglaterra, desvairados por maus anos agrícolas.

Mas também pela Guerra dos Cem Anos (que só terminará em 1453); pela corrupção anormalmente agigantada dos grandes senhores feudais e do alto clero, sobretudo em Essex e Kent. Mais remotamente, das alterações demográficas, decorrentes da pandemia (“peste negra”), de 1348/50, matando mais de um milhão e meio dos cinco milhões de habitantes do reino e rarefazendo a mão de obra agrícola nos campos ingleses.

Ao que acresce uma progressiva emergência de uma “gentry” mais rica e ilustrada, nos campos ingleses, que sabiamente substitui a “sheep-pasture” (menos mão-de-obra) pelo “tillage” (mais emprego para os assalariados rurais, mais rendimento por hectare) e que apoia a revolta, por interesse pessoal, reivindicando um papel mais ativo “na condução dos negócios do reino”… Para tal, caber-lhe-ia enfrentar e neutralizar uma aristocracia central, sediada na Corte, governando de forma corrupta e inepta, em nome de Richard II (14 anos, à data).

A propósito, a substituição do pastor pelo trabalhador rural (tiller) explica, talvez, o simbolismo do cognome do dito Wat (assassinado pelo Mayor de Londres, Walworth).

Parece correto, a crer em Guy Fourquin e J.-L. Goglin, em falar de “Revolta” e não de “Revolução”, pois que, apesar de uma relativa disciplina militar dos revoltosos (havia entre eles, segundo Walsingham, mais de seiscentos arqueiros e seiscentos sargentos “desempregados”, que tinham lutado na Guerra dos Cem Anos), carecia em absoluto de uma teoria, de um projeto, de uma doutrina.

Não passava de um levantamento popular (como os seus contemporâneos na Mitteleuropa, Flandres, Portugal, e as “Jacqueries”), que ensaia as potencialidades de castas sociais urbanas em ascensão e só atingirá o seu fito com a Reforma. O que arrasta as multidões dos Home Counties e da East Anglia, é mais a abolição de deveres servis, o livre uso das florestas, a miragem das riquezas a pilhar como lhes garantira John Ball.

Serão Henrique Tudor e sua filha Isabel, primeiro; Richard Cromwell, depois, que darão a esta “força social”, aos seus aldermen, comerciantes e guerreiros profissionais uma ideologia, um fio condutor, uma estratégia de longo prazo.

Até uma nova religião, não fosse o Diabo (muito ativo nos negócios dos homens) tecê-las… Uma burguesia dos emergentes centros urbanos (ex-feiras) começa a (auto)- reconhecer-se, enquadrada pela pedagogia dos dominicanos e (alguns) franciscanos… Eduardo I, o “Justiniano inglês” tinha já definido, com precisão o que era uma “House of Common People”, o direito da terra, coletâneas de “Case Laws”, como as de Glanvill e Bracton (1272-1307). Com os Eduardos, aparecem, com inusitado vigor, os primeiros leigos cultos, os juristas, com as suas associações, os “Inns of Court”.

A “cloche des Tillers” (espadeladores), na torre sineira dos paços das Câmaras urbanas, chamava ao início da labuta diária, depois da interrupção vesperal, significando o império (nem secreto, nem iniciático) dos mercadores e artesãos sobre toda a urbe, ritmando a vida dos que tinham trabalho e opondo-se ao carrilhão da igreja paroquial ou catedral.

No século XIV, os anglos (como os escoceses, boémios, flamengos, franceses ou portugueses) não eram ignorantes e a burguesia neo-emergente não necessitava de secretismo iniciático para atingir o saber. Não apenas nas manhas dos “humanismos medievais”, mas sobretudo, nas “ciências” cartográficas e médicas, nas tecnologias extrativas e industriais, nas finanças e comércio marítimo…

Mesmo antes de Gutenberg, o Codex (em expansão exponencial) mais divulgável, substitui, há muito, o Volumen e o rolo antigo.

À exportação de lã em bruto para os teares da Flandres, substituía-se uma próspera manufatura e comercialização ultramarina de lanifícios em Inglaterra, que solicitavam toda a lã que os rebanhos pudessem fornecer e muito cereal para homens e animais. Por esta forma a política económica de Eduardo III e a conjuntura internacional perturbavam a ordem feudal inglesa e ofereciam, nos burgos, alternativas ocupacionais aos vilões emancipados ou foragidos.

O papel da Mulher, por exemplo, (que as sociedades maçónicas nunca favoreceram particularmente) é decisivo na mudança, da cultura científica (“Hortus Delitiarum”, de Herrade de Landsberg) à geopolítica (Leonor de Aquitânia); da   difusão por mulheres (Edwiges d’Antwerp; Marguerite Porète) da ideologia libertária e igualitarista dos Beguardos e Beguinos, ao papel fundamental na eclosão das ditas “heresias” Lollards (John Wycliffe); Dolcinitas (Margarida de Trento, “cérebro” e estratega das guerrilhas de Dolcino de Novara); do movimento Hussita e Taborita, pouco mais tarde, na Boémia e Morávia….

A sociedade feudal tinha insuspeitadas capacidades de recuperação, apesar da baixa esperança média de vida, da exploração servil, das fomes e pandemias… L’Ordre de Compagnons du Devoir (em cuja sede atual em Paris me deram a honra de convidar para almoçar, após visita ao Museu), existe também na Flandres e em Itália, mas não pode ser confundida, por “cousinage” abusivo, com a Maçonaria.

Tem sinais de reconhecimento e heróis muito seus (Maîtres Jacques Moler e Soubise de Nogent). Mas o seu escopo é exclusivamente operativo embora “possa” ter acontecido ela ter tido alguma influência nos primórdios da Maçonaria operativa, nos longínquos tempos das catedrais…

A ela se deve o amor à “Excelência” do trabalho bem executado, da pedra ao vidro ou ao diamante, e à entreajuda dos que ganhavam o seu pão, trabalhando…

“The Commons”, o common people de que fala Cromwell, piedoso, industrioso e em vias de rápido enriquecimento.

Além do seu indubitável “savoir-faire” geoestratégico e financeiro, não vislumbro qualquer lugar especial, aqui, para a Ordem do Templo do Senhor ou a sua congénere (pelo menos em estranhas diplomacias), Ordem do Hospital de S. João Esmoler de Jerusalém.

A revolta de 1381 é a revolta do vilão emancipado, que teve em John Wycliffe o seu líder espiritual, com a formulação, em 1377, com a base teórica que estabelece para negar a autoridade papal.

A sua “teoria da soberania” ensinava que a autoridade dos maus não pode vir de Deus, pelo que o poder do Papa derivava dos Césares de Roma, não de Cristo ou Pedro. Ora, em 1381, Wycliffe está com os que cobiçam os bens do clero (John of Gaunt, Percy of Northumberland, o partido dos “cavaleiros”).

A celebração do serviço divino e a Bíblia em inglês, o movimento Lollard e a sua horrenda repressão (“De Heretico Comburendo”) só surgirão em Oxford, em 1382.

Como poderiam os Templários apoiar uma revolta, para eles e para as suas propriedades em Inglaterra, totalmente suicidária?

Imagem alusiva á rebelião camponesa de Wat Tyler, 1381
Imagem alusiva à rebelião camponesa de Wat Tyler, 1381

REVOLTA ESPONTÂNEA?

Iria jurar que quase…

O porquê dos homens de estatuto elevado e de Council Members dos Home Counties na revolta (novo imposto incomportável e necessidade urgente de participar no governo do reino, que na regência do jovem Ricardo, caiu nas mãos de incompetentes e corruptos, mais do que era habitual…).

No entanto, só produziam (se alguma vez o tentaram a sério…) um “programa” que tudo prometia a todos, sem saber como o iria fazer….

Sobrenadará, porventura, isso, sim, a memória das Jacqueries francesas, vinte anos antes e a influência indubitável das doutrinas de John Wycliffe, homem de Yorkshire por nascimento, de Oxford por profissão (“estatuto social elevado”) e o seu movimento “Lollard”.

E aliados poderosos, mesmo na nobreza (John of Gaunt e Lord Percy of Northumberland), entre os que (como o tinham feito Filipe o Belo e o seu senescal, Guillaume de Nogaret, em França) se queriam apossar da riqueza das ordens religiosas (uma de cada vez, que não eram parvos…).

Os templários, se algo tivessem que ver com esta História, não estariam certamente no lado certo…

Imagem alusiva á rebelião camponesa de Wat Tyler, 1381
Imagem alusiva à rebelião camponesa de Wat Tyler, 1381

HIPÓTESES EXPLICATIVAS

Eduardo II não tomou nenhuma medida desinteressada e “per noblesse oblige” para proteger os Templários.

Recebeu, através de uma chantagem miserável que exerceu sobre as Comendadorias, nove mil duzentas e cinquenta libras esterlinas, do Templo (comendadorias inglesas), 4% dos recursos de toda a Ordem, a nível mundial…

Sem contar o que pagou aos cavaleiros escoceses que apoiavam o seu partido contra os Reis da Escócia, em terras da Ordem, com um rei que esse, sim, a protegia…

Jaume de Aragão desdiz-se e recua na decisão de atribuir os bens de Templários e Hospitalários a uma nova ordem, aragonesa, no Concílio de 1312 (Clemente V), permitindo a atribuição aos hospitaleiros de todos os bens dos templários (Bula “Ad Providam”).

Para, por fim, conseguir criar a Ordem de Montesa (bens da Comendadoria de Valência), indo os bens de Aragão e Catalunha para os Hospitalários. Em Portugal, é a Ordem de Cristo que os herda (único caso onde “pode” ter havido influência de cumplicidades fraternas entre templários), por compromisso de 13 de Junho de 1317.

Falemos, por fim, dos templários.

A enorme maioria não se esconde ou entra na “clandestinidade”.

Bernardo de Fuentes, comendador de Aragão, por exemplo, foge em 1310, torna-se chefe de uma milícia muçulmana ao serviço do Bey de Túnis e é de novo recebido, em Aragão, como embaixador daquele, em 1313…

Em Kilclogan, Crook e Kilburny (Irlanda); Escócia, Courlândia, Toulouse, Ravena, Bolonha, andam em plena liberdade, continuam, em muitas situações, a usufruir dos produtos dos latifúndios rurais que possuíam, casam-se (e é de supor que tenham tido risonhas famílias…).

Os seus saberes em diplomacia internacional, finanças e contabilidade são reconhecidos e (muito) bem pagos.

E, sobre tudo isto, há que reconhecer também, não os incensando sem razão, que recorreram um sem número de vezes à violência pura e simples para espoliar pessoas dos seus bens, traíram sem vergonha juramentos e alianças, para não falar das decorrentes da religião que diziam defender (embora se dissessem “guelfos”, ou papistas, contra o Imperador…) o que leva a especular, quase inevitavelmente, sobre as opções “cívicas” de Dante Alighieri, por exemplo.

Alguns guerreiros do Templo foram condottiere e mercenários em diversas ocasiões, como os célebres Roger de Flor e Ramon Muntaner…

Quanto às afinidades com a designada “heresia” Cátara, as blasfémias e missas negras com ritos um pouco “cochons”, parece-me desvirtuamento (de má fé) baseado em ocasionais condutas, fruto de uma certa sofisticação decadente, em que alguns tombaram.

O que não admira, dada a sua incessante e frenética atividade diplomática, militar e comercial-financeira nas Cruzadas e até depois, as suas aventuras intelectuais pela cultura árabe, romana “pagã”, grega, aramaica, sefardita.

Geravam nalguns comportamentos e ditos, logo generalizados e sempre mal-interpretadas.

E é tudo.

Carlos Macedo

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