Que questões vem pôr o romance Rosas a Prestações, de Elsa Triolet, escrito em finais da década de 1950, isto quando a sociedade de consumo dava os seus passos seguros numa viragem de civilização? A conceituada escritora socorre-se de uma história que parece tirada de um conto de fadas. Há uma menina que vive naquilo que hoje se chama uma família disfuncional, a menina não conhece o pai e ela e os irmãos sabem que a mãe entrega a qualquer homem, sem rasto de pudor. Vivem todos numa choupana onde os ratos acamaradam com os humanos num mundo de imundície e abjeção. A menina vive num estado de espírito de ambições, quer pautar a sua vida pelo asseio, pela ordem, por tudo quanto seja polido e brilhante, é assim que vai construindo um mundo imaginário; há uma cabeleireira de uma vila próxima que a recolhe, e essa menina, de nome Martine, começa a sentir o seu sonho como uma realidade. As circunstâncias proporcionam que quem a acolheu se transfira para Paris onde Martine se irá empregar num dos mais famosos institutos de beleza. A porcaria, a promiscuidade, a convivência com os ratos é um passado que fica enterrado. Mas desse tempo, há uma atração por um jovem chamado Daniel Donelle, imagine-se um apaixonado por botânica, estamos ainda no período da ocupação alemã, é nessa meninice que a tal família de adoção lhe concretizou o sentido da ordem e o gosto pelo banho diário.

Em Paris, por pura casualidade, Martine encontra Daniel, vive com esta família de adoção, a senhora Donzert e Cecília, a sua filha, atenção, Martine é tratada como filha. Martine está atenta à transformação que está a ocorrer no mercado, as mudanças na roupa, a chegada do nylon, os cosméticos, ela sente-se profundamente feliz naquele instituto de beleza onde tudo é perfumado, arejado, as empregadas vestidas de azul-celeste, o pessoal feminino usando sapatos brancos de solas altas de cortiça. A convivência com Daniel torna-se intensa, vivem em estado de paixão. A viúva senhora Donzert casa com o senhor Jorge, homem de grande empatia, bom conversador, ouve atentamente Martine e a sua avidez de consumo, não há colchão de molas que não a deixe frenética. Martine ama a vida cosmopolita, Daniel ama as flores e é um camponês. Dá-se o casamento de Martine e Daniel, começa a aventura estonteante de pôr o conforto doméstico, mas tudo isto é feito num contraste, pois durante a lua-de-mel o jovem casal percorre o domínio dos pais de Daniel, ali a questão dominante são as rosas, as experiências com as hibridações, os odores perfumados daquele mundo floral, Martine olha de esguelha esta vida de aldeões, de pátios pavimentados e juncados de palha, a lama a despontar, charcos onde chafurdavam patos, glicínias a trepar pelas paredes. Depois de lhe mostrar a casa, Daniel pergunta a Martine se ela gosta, ela é cónica na resposta, gosta dele. Martine não gostava da casa da sua infância, está determinada, Daniel não lhe fará partilhar do seu passado, cada um deles há de ficar com o seu sonho. Toda aquela conversa entusiasmada sobre rosas é um assunto que lhe passa ao lado, pelo contrário Daniel vive em excitado com os recipientes com os estames, procura um híbrido que tenha o perfume da rosa antiga e a forma, a cor de uma rosa moderna, estuda a ascendência e a descendência de algumas variedades. Vivem num estado de lua-de-mel luminosa, a vida real vem depois, ele é botânico e dedica-se às rosas, ela trabalha no instituto de beleza em Paris e vai enchendo a casa com compras a crédito, desde mobília a eletrodomésticos.
E a tempestade anuncia-se, muito lentamente, o mundo em que ambos vivem não são conciliáveis, os encontros vão sendo cada vez mais esporádicos, Daniel paga as faturas daquele crédito desmesurado a que Martine não resiste. Começam as traições de Daniel, mesmo que ele venha da quinta até Paris para estar com Martine, esta trabalha cada vez mais para pagar as prestações. Chegam as zangas: “Martine, no pequeno divã do estúdio, começara a soluçar… Daniel hesitou, mas não se conteve e tomou-a nos braços… Martine não passava de uma mulherzinha tola, incoerente, fantasiosa, uma mulher de revista; era preciso que ela compreendesse que não podia pedir mais dinheiro ao pai… A rosa perfumada não parecia querer dar o que queria. Outras hibridações que tentara iriam, talvez, recuperar o que perdera junto do pai, ele tinha esta paixão das rosas, fazia-lhe doer o coração deixar as plantações pelo microscópio. Talvez ele criasse, apesar de tudo, a rosa Martine Donelle, que lhes daria tudo o que Martine desejava, porque ele só queria uma única coisa: vê-la feliz. E era incompreensível que uma felicidade que depende de objetos inanimados, que se pode simplesmente comprar, fosse disputada a quem quer que seja… Daniel sentia-se mesquinho, pobre de generosidade. E, ao mesmo tempo, revoltado por ver a felicidade à mercê de um frigorífico.”
Martine vai pedindo cada vez mais dinheiro emprestado para pagar as faturas, a casa polvilhada de tudo quanto é conforto. Martine comete a imprudência, para ganhar mais dinheiro, de ir a casa das clientes do instituto, será irradiada por deslealdade, nada vai ficar como dantes. Por razões de negócios, Daniel vai aos Estados Unidos, volta apaixonado, pedirá o divórcio. Em contraste com esta vida em descalabro, Cecília, a irmã, anda feliz e prepara o casamento. Martine intensifica as práticas mundanas, joga bridge em casa das suas clientes de elevada categoria social. Passará férias sozinha, uma sensaboria. Já tem novo trabalho, mas aquela rutura amorosa com Daniel alterara-lhe a vida, perde o entusiasmo, os fornecedores vão buscar os objetos a casa. Então Martine toma uma decisão, volta ao mundo da sua infância, a mãe morrera e deixara-lhe alguns bens. Volta à choupana onde passara uma boa parte da meninice, ali vive o último companheiro da sua mãe, fala-se dos ratos, serão eles que a devorarão. E assim termina a obra: “Foi em 1958 que surgiu no mercado a rosa perfumada Martine Donelle: possuía o aroma incomparável da rosa antiga, a forma e cor de uma rosa moderna. Com as felicitações do júri.”
Metáfora, romance de moralidade? Há uma nota de Elsa Triolet que anuncia este seu livro como o primeiro de um ciclo intitulado A Idade do Nylon. E explica-se: “O século XX, como qualquer outro, desde que o mundo é mundo, oscila entre o passado e o futuro; na presente história, a matéria plástica está no fundo das cavernas, o conforto moderno escraviza aqueles a quem deveria servir, os cavaleiros cruzam armas pela ciência… há sonhos da cor do tempo, há paixão, estável como o nosso planeta vertiginoso… puxadas para trás, impelidas para a frente, detidas entre a Idade da Pedra e a do nylon, as personagens que encontrareis nas páginas que seguem são, como todos nós, o resultado dilacerado, dilacerante deste eterno estado de coisas.”
A crítica aclamou o livro, hoje totalmente esquecido; a sociedade de consumo deu tantos saltos que este possível conto de fadas com lição moralizante já não assombra ninguém, apesar de o crédito continuar a ser motivo de ponderação e tratado com respeito, apesar de vivermos tempos imprevisíveis e de andarmos advertidos de que pairam no ar os espectros do sobreendividamento, mas isso é outra história que Elsa Triolet não podia adivinhar, ela escreveu o seu romance em plena euforia da sociedade de consumo, hoje vivemos numa sociedade de hiperconsumo e hiperindividualismo, a verdade, a frescura das sensações que Elsa Triolet aborda no seu romance é uma corrida para a felicidade e para o abismo que faz parte da história. O que é indiscutível é ser o romance de uma beleza inexcedível.