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Leituras inextinguíveis (105): Não se trata só da primeira obra literária policial portuguesa: O Mistério da Estrada de Sintra é um romance-folhetim extraordinário

O Mistério da Estrada de Sintra, escrito a quatro mãos por Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, em 1870, e publicado sob a forma de folhetim no Diário de Notícias, no mesmo ano, continua a surpreender o leitor, não só pela qualidade da arquitetura da escrita como também por se identificar com o melhor do vanguardismo literário europeu do seu tempo, com um tratamento exímio da fábrica folhetinesca, que tinha então uma poderosa marca de água na vida dos jornais e no desafio que lançava a importantes nomes da literatura. Recorde-se que as investigações de Sherlock Holmes, de Arthur Conan Doyle, saíam em folhetins, como algumas obras de Zola e Balzac, entre tantos outros. A rádio e a televisão foram atrofiando esta modalidade literária, a rádio introduziu o folhetim e a televisão a telenovela, os grandes potentados do media à escala mundial dominam hoje as séries televisivas – mas na origem esteve o folhetim de jornais.

Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz
Ramalho Ortigão e Eça de Queiroz

A surpresa deste romance-folhetim é, pois, a frescura, a ironia travessa e até a revelação de que os autores estavam verdadeiramente documentados e conhecedores do melhor da cultura europeia, conheciam os movimentos literários, filosóficos e científicos de proa, e não surpreende que tenham tão seguramente escrito numa feitura realista, simbolista e até ultrarromântica. Um simples exemplo, e antes de começar a falar na história, que começa com um rapto, ali para os lados de Belas, dois amigos são levados por mascarados para uma casa um tanto insólita onde está um cadáver. Um desses senhores levados à força irá ter uma conversa com um cidadão prussiano, além da conversa versar o espiritismo, o prussiano dirá em dado momento: ”O materialismo, guiado de um lado pelas conquistas das ciências físicas e naturais e de outro lado pelo relaxamento dos costumes contemporâneos e pela depressão sucessiva e assustadora da moral, vai comendo no campo da filosofia o espaço não já muito vasto em que residia a fé. Novas crenças e novas doutrinas virão sucessivamente substituir as crenças e as doutrinas mortas por que se regulava o sobrenatural. O homem que, segundo todas as probabilidades, não poderá nunca prescindir do maravilhoso, desse atrativo supremo da sua imaginação, irá então naturalmente buscar ao espiritismo, modificado e aperfeiçoado pela ciência futura, a teoria de uma tal ou qual sobrevivência que o lisonjeie, e a base de correlações ainda não estudadas dos seres que existem com aqueles que os precederam e com os que se lhe hão de seguir.”

Aliás os dois autores deixarão referências à sua vastidão cultural, que estarão igualmente presentes noutra importante obra a quatro mãos, onde igualmente não falta a ironia e a crítica social, As Farpas. Este romance-folhetim foi uma pedrada no charco. Os nomes das pessoas envolvidas são uma letra ou asteriscos, nada melhor para deixar o leitor intrigado e a fazer conjeturas. Tudo começa com uma carta dirigida ao redator do Diário de Notícias, vão por ali fora dois amigos a caminho de Lisboa, depara-se-lhes um cupé, aparecem mascarados que os obrigam a subir para a carruagem e lá vão vendados – inevitavelmente, o leitor do jornal já está prisioneiro do episódio seguinte. Há conversa entre os mascarados e os dois amigos levados à força, chegam ao destino, entra-se numa sala onde está um cadáver. O conhecedor das ciências médicas confirma que está ali um morto por ingestão de ópio. Nisto aparece alguém a quem os mascarados tratam por ladrão, goza do nome A. M. C., a discussão ferve, amanhece, novo episódio.

Que o leitor não espere que eu aqui vá derramar toda a trama, bem enredada, por sinal, os amigos ficam confinados, mas separados. O doutor sequestrado vai explorando o recheio do quarto, há um cabelo de mulher numa almofada, há um lenço, o mobiliário é estranho, ou será casa de encontros fortuitos ou poiso de uma sociedade secreta. Entra agora uma nova carta dirigida ao Diário de Notícias, alguém faz perguntas e deixa no ar que percebe o que está por detrás deste crime; um sequestrado escreve a outro, fala de uma conversa tida, como se fosse numa sessão espírita com o tal prussiano que dorme num quarto ao lado; de novo intervém um leitor de nome Z, é perentório: “O Mistério da Estrada de Sintra é uma invenção: não uma invenção literária, mas uma invenção criminosa.” Já está a fazer as suas investigações, dá nome para um dos cúmplices do crime, tem um amigo, M. C. sobre o qual querem fazer recair as suspeitas. Arrasa as cartas escritas pelo doutor para o folhetim, tudo aquilo é um destrambelho, uma imbecilidade, um doutor é um lorpa: “Ah! Como toda esta história é artificial, postiça, pobremente inventada! Aquelas carruagens como galopam misteriosamente pelas ruas de Lisboa! Aqueles mascarados, fumando num caminho, ao crepúsculo, aquelas estradas de romance, onde as carruagens passam sem parar nas barreiras, e onde galopam, ao escurecer, cavaleiros com capas alvadias!” E termina pedido ao redator do jornal que varra depressa o folhetim. Um dos mascarados também escreve ao senhor redator, vem agora com a história que mete conde e condessa, uma viagem até Malta, passa-se por Gibraltar, vai entrar um oficial inglês, o capitão Rytmel, figura indispensável para o dramalhão que se segue, entra igualmente em cena uma fogosa Cármen, mulher de D. Nicazio Puebla, vamos ter derriço da condessa com o capitão, mas a Cármen já se tomara de amores com o oficial em Calcutá, houvera uma caçada ao tigre, o capitão salvara a fogosa espanhola, esta promete-lhe amor para toda a vida. A viagem a Malta mete ciumeira que se farta, está montada uma atmosfera de opereta que desandará para mortes e idas para conventos, vê-se mesmo que Eça e Ramalho quiseram fazer uma chuchadeira aos dramas românticos.

O romance-folhetim é infatigável em cartas ao senhor redator. Desta vez é A. M. C., natural de Viseu e que se matriculou em Lisboa na Escola de Medicina. Conta como conheceu a condessa, como esta vive consumida pelo seu amor inviável, o oficial inglês anda fora de portas. Só que, inopinadamente, ele arriba a Lisboa, vem com falinhas mansas e muita moralidade, chegou a hora da vingança, a condessa dá-lhe um copázio de água com ópio, como no romance policial explica-se a motivação do crime, se já Cármen queria ir pedir perdão a Deus num convento, e acabou nas águas do Mediterrâneo, a condessa parece tirada do Amor de Perdição de Camilo, entrega todos os seus bens e vai para uma pobreza conventual junto de umas velhas monjas. Eça de Queiroz faz aparecer Fradique Mendes, que dará muito que falar na obra queirosiana. E se até agora tudo era anónimo para acicatar ainda mais a curiosidade do leitor, os autores despedem-se do romance-folhetim com uma última carta dirigida ao senhor redator, assim mesmo:

“Podendo causar reparo em toda a narrativa que há dois meses se publica no folhetim do seu periódico não haja um só nome que não seja suposto, nem um só lugar que não seja hipotético, fica V. autorizado por via destas letras a datar o desfecho da aludida história – de Lisboa, aos 27 dias do mês de setembro de 1870, e a subscrevê-la com os nomes dos dois signatários desta carta. Temos a honra de ser, etc. Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão.”

Quem pode duvidar de que este melodrama de laboratório é uma gostosa sátira que resiste às rugas do tempo? É ler e rir por mais, a travessura literária foi uma surpresa naquele tempo e continua a ser uma obra-prima da jocosidade, o mesmo é dizer que é de leitura imperdível.

Mário Beja Santos

 

 

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