Quinta-feira, Dezembro 7, 2023
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O Sonho ao Poder

Novembro é um mês muito especial para mim. Com o passar dos anos, coisas radicais e importantes aconteceram na minha vida, sobretudo entre os dias 10 e 20 de novembro. Antes, era apenas o mês do aniversário do meu tio. Nada de mais, nem esse era um evento que ele gostasse muito de celebrar. Mas em 1995, algo de muito intenso, de muito especial e profundo aconteceu. Algo tão bem tecido nas dimensões invisíveis, que só o tempo permite desvelar. Vou contar-vos.

Nesse ano, a 16 de novembro de 1995, Mário Viegas, apresenta-se como candidato à Presidência da República Portuguesa, projeto que acabou por não se concretizar, pois a doença da qual padecia, acabaria por inviabilizar a sua ida às urnas. Nesta sua candidatura, adoptou o slogan “O Sonho ao Poder”. Esse acabou por ser o título do livro que o meu marido, anos depois, iria escolher para falar sobre o “tio” que ele nunca chegou a conhecer mas que o inspirou a escrever. Foi também o nome dado à exposição itinerante que circulou de norte a sul de Portugal Continental, em muitas bibliotecas e teatros.

“O Sonho ao Poder”… as palavras têm realmente muito poder, sobretudo quando estão carregadas de intencionalidade. Estas palavras ditas pelo meu tio estavam impregnadas de uma profunda e sincera intenção. É interessante contemplar esta história de uma perspectiva mais alargada, onde as palavras ditas se tornam vivas.

Eu recordo-me perfeitamente de ver o meu tio na televisão, em novembro de 95, a mostrar o seu “livro de bolso, prático para ler no metro”, como ele dizia. Naquela conferência de imprensa, ele estava muito magro, infelizmente por causa do vírus da SIDA, contra o qual ele lutava desde 1993. Com o seu livro de tamanho A3 em cima da cabeça, ele apresentava a sua “Auto-Photo Biografia (Não Autorizada)” que escreveu em menos de um mês. Esse livro teve 200 exemplares. Ele deu 100 livros e pôs à venda os restantes 100. Em 2003, esta obra foi reeditada pela Câmara de Cascais. Agora, em 2023, é a vez da Tradisom, de José Moças, com a ajuda da Câmara de Santarém, reeditar o livro com alguns bónus.

Já no fim da sua vida, tenho algumas memórias de entrar na casa onde ele vivia, o nosso querido n.º 5, em Lisboa, e de ver o chão cheio de maços de folhas com escritos e fotos espalhados por todo o lado. Afinal, ele não era desmazelado como parecia. Era bastante focado e organizado. Só assim era possível escrever o livro em tão pouco tempo. Era incrível e comovedor vê-lo a preparar conscientemente a sua passagem. Quantos de nós chegam a este grau de mestria? Punha os preços atualizados atrás dos quadros, dava recados, organizava os livros nas prateleiras com uma ordem própria, colocava os objetos que entendia para dentro de umas caixas com destino ao Museu do Teatro… era tempo de dar a vez a outros, tempo de sair de cena.

Esta passagem de testemunho estava a acontecer desde 1993, quando tinha descoberto que estava doente. A notícia surgiu como uma bomba atómica. Nesse mesmo ano, eu lidava com as minhas próprias bombas atómicas… divórcio dos pais, provas de acesso à universidade, sair de casa aos 18 anos e ir viver a 400 kms de distância da minha família… Too much!

Nesse ano, o meu tio faz, durante uns meses, uma espécie de imersão com a Companhia Teatral do Chiado, prepara uma peça que se intitula “Enquanto se está a Espera de Godot”, de Samuel Beckett. Lembro-me de ir à estreia, a 13 de Setembro de 93, na sala estúdio do Teatro de S. Luiz, e de me ter emocionado mesmo muito. Aquele argumento era sobre ele, sobre nós. No meio das atividades mundanas, das conversas triviais atravessadas por reflexões profundas sobre o sentido da vida, sobre a passagem do tempo, faziam-se emergir temas como a gestão das expectativas, das desilusões, ficava à vista o absurdo das angústias, o lado trágico e cómico da vida… E, no final, numa densidade emocional que se tornava palpável no ar que respirávamos, naquele silêncio, ali estava ele, totalmente exposto a nu. Estava ali revelado o seu ano de 1993. Acho que foi nessa noite que eu o vi pela primeira vez, que o vi de verdade. 

Vi o menino, aquele que sonha e que preserva a inocência e a curiosidade, a doçura e a meiguice, a delicadeza. Vi aquele que contempla a beleza, que mergulha no espanto e que se maravilha com a vida. Vi o criativo que é a raíz que nutre tanto sentido de estética e luz. 

Vi a sua generosidade profunda naquela doação total e absoluta, onde se despe no final da peça para se entregar nas mãos do público. Como actor, não tem mais nada para oferecer senão o seu corpo e a sua alma. “Aqui estou eu”… Não há maior sinceridade que aquilo.

Vi a lealdade aos seus valores, o amor, a paixão consumada (como disse um dia a Maria de Céu Guerra), o sentido de missão, que o fez superar-se a si próprio e às suas fragilidades.

Vi o jovem com medo, com inseguranças, com a necessidade em ser amado e aceite, vi a raiva, o ódio, vi a irreverência, a arrogância, a rebeldia, a teimosia, vi o crítico com um sarcasmo acutilante a roçar a crueldade, vi o desespero e a dor… vi as emoções todas que todos temos e todos escondemos mas que ele mostrou sempre, lidou com elas sempre, correu o risco de cair no abismo sempre e nunca mais voltar… mas voltou sempre, lutou heroicamente sempre.

Vi o homem focado, estruturado, disciplinado, trabalhador metódico, resiliente, com uma força incansável, maleável, versátil, camaleónico, capaz de adaptar-se a todas as circunstâncias.

Sobretudo o que eu vi foi o velho. Vi o mago, o feiticeiro, o mestre. Vi-o movimentar-se entre mundos, o visível e o invisível. E tinha a capacidade de nos levar com ele. Era um génio, um daqueles que empurra a humanidade para a frente, que nos lembra que somos livres e dignos, em qualquer contexto. Ele parecia estar só mas nunca o esteve. Nem nós.

Vi o poeta. Vi a poesia.

Mas, naquela noite, não vi o tio. Esse só o vi depois. Quando fomos passar o ano a Barcelona e receber 1994. “Menti-vos?”, dizia ele de braço esticado e de boina na mão, num passo rápido, enquanto fazia de guia turístico e nos levava a conhecer a cidade que tanto amava, a Barcelona de dia e a Barcelona de noite, aquela que está à vista de todos e a outra, a underground.

A partir daí vieram as conversas. Não me lembro de metade do que ele me disse, lamento. Ficou apenas a intensidade, a emoção, o peso da responsabilidade. Percebi que queria passar o testemunho. “Trata bem das minhas coisas”. Ele sabia o valor que elas tinham para o mundo. “Não me deixes cair no esquecimento”.  E eu sentia-me tão desamparada nesta missão…

O meu tio conhecia bem o valor da tridimensionalidade do tempo. Ele tornou-se um artista intemporal. “Não percas tempo!…”. Ele não perdeu. Ele sabia que o valor mais importante era o tempo.

Em 1994, teve o cuidado de ir a Vila Real, onde eu era, na altura, uma jovem universitária que descobria o mundo da noite. Ele fez de tio e, com o pretexto de viajar até tão longe para apresentar uma peça de teatro, quis estar comigo, esteve presente e preocupou-se em saber se eu estava bem. Mostrou-me as suas superstições, a sua experiência de vida, a sua forma de ver o mundo, a sua capacidade de rir-se de si e da vida… Foi das raras vezes onde estivemos juntos, focados um no outro. Ali estava eu com aquele gigante que desde pequeno sabia o que ser e fazer quando fosse grande… Eu andava ainda a apanhar estilhaços das bombas atómicas, vivia à deriva, sem propósito, sem paixão. Os meus olhos ainda estavam entreabertos e não conseguiram perceber as sementes que ele tinha deixado em mim.

Em novembro de 1995, um dia depois dele se mostrar na televisão com o livro na cabeça, eu tive o meu primeiro ataque de pânico. Na altura, não percebi a beleza colateral de tudo isto e como os fios das vidas das pessoas se entrelaçam com extrema elegância. Graças a esse acontecimento na minha vida, eu descobri o meu propósito, o meu “teatro”.

Como dizia Eduardo de Filippo “os actores vivem a sério no palco, aquilo que os outros na vida representam mal”. Descobri que o que me apaixonava, na verdade, era o teatro da vida. Chamar as pessoas para encarnarem o actor que são e não a personagem que pensam que são. Se não fosse o ataque de pânico, não descobria a sofrologia e, sem a sofrologia, não tinha a metodologia certa para conseguir viver esta intencionalidade em profundidade. Foi um dos maiores sofrólogos que eu tive a sorte e a honra em conhecer. Aqui estou eu, tio, a levar “o Sonho ao Poder”, toda uma vida dedicada a levar o meu Sonho e o dos outros ao Poder. Tu deste-me essa fé e essa capacidade de ser pioneiro em algo, ser obstinado e saber estar sempre ao serviço. De abraçar, como disse a Céu, o “herói frágil”. Tu deste-me a possibilidade de ser eu. 

A 1 de abril de 1996 o meu tio fez a passagem, numa cama de hospital, de madrugada, a dizer poesia. Uns pensavam que era uma grande mentira mas sei que ele escolheu de forma sábia e minuciosa o dia para partir, deixando, como sempre, uma assinatura. “Menti-vos?”

 Fiquei incumbida de dar a conhecer o seu legado às futuras gerações. Com a sofrologia aprendi que o valor da responsabilidade é a habilidade em saber responder. Não precisa ser um peso, pode ser vivido de forma leve e amorosa. No que toca às questões relacionadas com o meu tio, isso só acontece quando compartilhada com outros que também sentem dentro de si esse chamado. O seu legado é de uma dimensão tão profunda, que se torna um valor nacional. Não é tarefa para o indivíduo, mas sim, para o coletivo. Gratidão por todos aqueles que querem estudá-lo, homenageá-lo, divulgá-lo. A sua voz torna-se mesmo património da humanidade. É urgente que as crianças e os jovens conheçam quem foi e o que fez Mário Viegas. Porque este homem vive em todos nós. Viva o Viegas, viva! Pim!

Ana Viegas Cruz

Autora do blog Ser Fenomenal

PS – Escrevo “actor” e não “ator” deliberadamente. 

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