“O tempo é dinheiro” ou “o dinheiro é tempo”? A dimensão temporal conheceu uma substancial alteração com a sucessão de ciclos de velocidade, a velocidade dada pelo comboio, pelo automóvel, as redes de cabo submarino, o telefone, o telegrama, a pressão jornalística, depois o avião, a era aeroespacial… Em conjugação com a automação, o crescimento das cidades, as dinâmicas da agricultura, o universo industrial e os seus círculos de qualidade; mas também o entretenimento da cultura de massas, e assim chegamos à digitalização. Neste longo percurso, ganhou foros de soberania um tipo de eternidade imediata, estas novas tecnologias de informação têm vido a integrar os países e os indivíduos em redes funcionais planetárias obviamente que a nossa relação com o tempo tinha que ser profundamente afetada, pois passámos de um tempo sequencial, cronológico para um tempo aqui designado por “intemporal” em que só o presente é que conta, estão nitidamente enfraquecidas as categorias tradicionais do passado e do futuro. A obsessão da urgência é o modo de ser do tempo, vivemos num império do efémero que impõe a brevidade como maneira de ser do uso das coisas, dos produtos culturais e das ideias.
Estas notas preambulares servem para apresentar um livro marcante, também fruto do tempo, já está datado, teve a sua primeira edição em 2003, em duas décadas ocorreram mudanças no digital que pressionam ainda mais o curto prazo e o instante. O Culto da Urgência, A sociedade doente do tempo, tem como autora uma socióloga e psicóloga Nicole Aubert. Ela inspirou-se para chegar a este livro numa pesquisa junto de grandes empresas de diversos setores de atividade: indústria pesada, banca, automóvel, indústria farmacêutica, informática, grande distribuição, seguros, multimédia e audiovisual. Sentiu que havia uma aliciante descoberta de parâmetros que passaram a ser controladores na nossa vida: a ditadura do tempo e o império da urgência, da instantaneidade, do imediatismo. O culto da velocidade vive-se em frenesim. Esta pulverização do tempo dificulta que nos detenhamos para observar texturas das coisas, dos lugares, dos elementos da natureza; perdeu-se a fruição de contemplar o mundo com o olhar tátil, gozar o silêncio, andamos orientados pelo relógio da pressa e não temos tempo para pensar qual é o custo psicológico de deixarmos escapar o uso demorado dos cinco sentidos. Outrora, distinguíamos dois tipos de tempo: o tempo físico, como por exemplo, o dos relógios, e o tempo subjetivos, o da consciência, onde vamos ao interior de nós mesmos.
O que domina agora é a contração do tempo, a sua aceleração. Esta nova relação com o tempo tem forte impacto no mundo dos negócios, é a lógica do lucro imediato; e nos meios de comunicação é a instantaneidade das notícias (não vamos aqui analisar quem comanda as centrais noticiosas, filtra acontecimentos ou faz esquecer informações que podem ser determinantes para a nossa liberdade de informação e expressão).
O sistema político é também fortemente afetado por este sentimento de urgência, os consultores de comunicação dos dirigentes preparam frases que irão depois ser drenadas para a informação como clipes ou spots, tudo isto faz parte da arte da política de representação.
Nicole Aubert avalia que este constrangimento do espaço e do tempo ganhou forma com a globalização económica, tudo passou a ser urgente, é o SOS drogas, análises médicas, ruído, património, homofobia, racismo, o que se quiser. As empresas de qualquer ramo temem ser ultrapassadas e esmagadas, formatam a sua atividade nesta lógica de mercado e da revolução da instantaneidade; a lógica da bolsa é de que a empresa vale se tiver lucros rápidos, não sendo assim, os acionistas mudam de campo, perdeu-se a visão do longo prazo, de esperar os resultados da investigação, está-se permanentemente a esticar a corda. E a autora procura refletir o que é que aconteceu a este individuo a viver em tempo real e quais são as armadilhas da instantaneidade, dá-nos um aliciante quadro da economia a partir do século XII, quando o tempo estava completamente desconectado de qualquer correspondência com a noção de dinheiro e de lucro, e dentro deste itinerário avançamos para os horários dos caminhos de ferro, para os horários dos relógios de ponta e para o tempo ditado pelos meridianos, e assim chegamos a um tempo completamente associado à vida pessoal e social em que o telemóvel de hoje criou um novo tempo relacional, somos todos educados em enviar sms’s sincopados em que as próprias palavras podem ser abreviadas numa letra.
No universo empresarial libertário criou-se um interpenetração entre a vida privada e a vida de trabalho, é tudo uma extensa fluidez, perderam-se as antigas medidas das hierarquias, entre, por exemplo, o que é uma urgência crítica ou um vetor estratégico, entre o que é delegável e não essencial, há como que uma tentação de tudo querer controlar, o que os funcionários ou trabalhadores produzem, deixou de ser importante a socialização dos trabalhadores, a própria cultura da empresa, recruta-se pessoal em cima da hora para tarefas ou a curto-prazo. E vão-se diluindo os vínculos sociais, o hiperindividualismo sai sempre triunfante. Com a globalização e a mão-de-obra barata lá distante fecham-se as minas, a siderurgia, os têxteis, a indústria automóvel; e para aliviar a consciência geram-se novas consignas que podem dar pelo nome de responsabilidade social empresarial, comércio justo, consumo responsável, reticências. A socióloga detém-se neste fenómeno do trabalho sem qualidade, a flexibilidade gera a desmotivação, salta-se de um emprego para outro a quem der mais dinheiro como quem salta de um galho de uma árvore para outro, adeus à lealdade e à fidelidade. Os quadros, os gestores, o conselho de administração, todos vivem numa corda bamba, nunca há êxitos absolutos, inopinadamente pode dar-se uma fusão ou chega uma OPA terrível que desmorona uma estrutura empresarial.
Nas conclusões, a autora põe em relevo que a urgência também pode ter um poder libertador, uma vez que nos alivia da espessura do tempo decorrente de certos métodos de decisão e reflexão. A urgência não é, por conseguinte, somente um tempo cheio, mas que nos leva ao vazio. Há uma dimensão benéfica quando o tempo de decisão e a ação se contraem, o acesso à intuição é facilitado e convergem a composição e a realização. Em jeito de remate deste poderosíssimo ensaio, Nicole Aubert chama a sua atenção para dois tipos de indivíduos que emergem nos dois extremos desta lógica da urgência. De um lado, o indivíduo adaptado, que se dá bem com esta aceleração, sempre febril pela corrente informativa e que gosta de sentir vibrar o seu telemóvel a todo o instante. Mas há uma outra lógica que visa a que não nos deixemos desapossar da nossa própria temporalidade, onde introduzimos a espessura do tempo da maturação, da reflexão e da meditação. É nesta tensão necessária entre duas lógicas de ação que cabe ao individuo hipermoderno ensaiar a definição de uma relação com o tempo e procurar, para seu bem e dos outros, identificar uma identidade fragmentada.
Uma deslumbrante obra de investigação que nos ajuda a compreender muito do nosso tempo, se bem que a seguir à sua publicação houve a crise financeira mundial de 2007/2008, os anos de recomposição, da ascensão do populismo, da epidemia e das guerras que nos envolvem. Mas há que reconhecer que a questão premente das duas lógicas nos toca até à medula, urge encontrar uma forma conciliatória para este contexto de sacralização do presente e a lógica que nos permite possuir referências portadoras de sentido, algo que, em última instância, se poderá saldar numa civilização que veio a aprender com os benefícios de ter tempo para si e saber dominar os efeitos perniciosos da flexibilidade e da imediata eternidade.
De leitura obrigatória, temos todos a ganhar em conhecer as investigações de Nicole Aubert.
Mário Beja Santos