Foi um mês cruel aquele mês. Cruel, ansioso e belo, se pode ser belo o mês que começa por ter os defuntos como símbolo. Defuntos houve-os também no golpe militar daquele dia 25 de novembro de 1975. Defuntos, desnecessários, de ambos os lados em conflito dos quais direi, à frente, os nomes. Nomes, o que fica de tudo o que foi, e aqui nem isso, todos esquecidos. Defuntas, ficaram outrossim neste dia, ambições de poder; ingenuidades revolucionárias; fidelidades castristas; saudades salazarentas; e outras boas intenções de que está o inferno cheio.
Vencedores foram-no Ramalho Eanes, Jaime Neves, Melo Antunes, o grupo dos nove; Mário Soares, que arriscaram naquela altura a vida e a ideologia. Foram-no ainda, vencedores, os mansos da história que nunca arriscam nada e levam tudo; oportunistas do dia seguinte e calculistas do capitalismo selvagem e argentário. O costume.
Afinal, que data é esta que um pequeno tetrarca da Capital deste reino quer agora celebrar, data que tem o mesmo número doutra acontecida um ano antes em abril? Data tão importante que um liliputiano deseja hoje chamar a si, apesar da semente que lhe deu o ser parvo, aquando do sucedido, andar ainda nos alforjes dos antepassados? Bem bom ser esse que saiu dali! Celebrar o quê? Com quem? A favor de quê? Contra quem? Estes tetrarcas sonham todos com uma faixa de Gaza no gozo de se emoldurarem para o provir, à custa do sangue alheio derramado, apesar de pequenos, e aprisionarem em si ambições desmedidas.
Dar-lhes troco, ainda fica caro com a importância que recebem, mas, como estou de pachorra, vou dar troco, não a este espertinho, que o não merece, mas a Ana Gomes que apoia esta iniciativa por que diz que Mário Soares, o qual não consta tê-la alguma vez solicitado, nem Ramalho Eanes que teria razões de sobra para tal, gostariam que fosse celebrada. Outro, que não é mau rapaz, esteve na Rússia e é comentador televisivo, afirmou no mesmo tom que « sem o 25 de novembro não haveria 25 de abril», mas aqui deve ser por não ter o calendário presente, nem saber que pelo meio houve o 11 de março e o 28 de setembro, dos putinistas extremos de direita deste país avant la lettre. É só fazer as contas.
Como a roleta cósmica quis que eu estivesse lá, no decisivo e mortal combate daquele 25 de novembro, ofereço ao leitor benigno e distraído, aos partidos políticos que espero não embarquem nestas vozinhas angélicas que escondem pontes clementes cujas não unem margens mas as dividem, e por certo que as não deixarão armar, ou solicitarão ao Parlamento, nos cinquenta anos desta data, que a lembre para unir e não dividir, ofereço, dizia, o seguinte relato dos acontecimentos daquele memorável, cruel, ansioso, terrível e belo dia, e foi destarte.
UM FILME CÓMICO OU PRA BAIXO TODOS OS SANTOS AJUDAM

Lisboa. RPM, quartel na calçada da Ajuda, 25 de novembro, 21 horas. No bar, para onde me dirijo, fumarento, acervejado, mal-cheiroso, reina um estranho silêncio. Soldados desgrenhados, barba e cabelo crescido, camuflado ou fardas desapertadas, em pé, cigarro e cerveja em punho, sentados em redor das mesas, seguem atentos a televisão onde discursa um capitão bem parecido, barba e cabelo também à Che, olhar aceso, verbo timbrado, ao peito, na farda, um autocolante onde se pode ler a sigla Poder Popular, com dois Pês para não haver dúvidas. Fala dos perigos que ameaçam a revolução; da extrema direita que conspira; dos traidores de abril; do Poder Popular entregue ao povo e dos soldados unidos vencerão; ou algo parecido, frase que provoca de imediato entre os espectadores uma algazarra de apoio e mais cervejas.
Um minuto atento, dirijo-me ao balcão atulhado, agradecendo a amabilidade dum camarada soldado que me cede o lugar para tomar um café. Estou neste quartel há cerca de dois meses, com outros oficiais, transferidos de Santa Margarida, depois de meio ano de intenso treino de guerra no último batalhão mobilizado para Angola que não partiu por causa do MRPP não deixar, aos berros no cais de embarque «nem mais um soldado para Angola!», «abaixo o colonialismo!». E os colonos portugueses desamparados, apanhados no meio duma guerra civil? E os retornados a granel sem defesa nenhuma? Ninguém quer saber, «nem mais um soldado para Angola», os colonos que se desenrasquem. Mandado para este quartel de Lisboa da Polícia Militar – com o Ralis, um dos mais poderosos do Copcon – , a bagunçada que aqui venho encontrar, após a disciplina e ordem daquele batalhão desmobilizado, espanta-me.
Como eu, e os oficiais transferidos de Santa Margarida, há aqui outros, todos de esquerda, vindos de outros lados – como se esta junção obedecesse a algum plano secreto – , alguns que já tinham participado no 25 de abril, e na anulação das intentonas da extrema-direita do 11 de março e 28 de setembro. Destes, vários, assarapantados com tanto desleixo, não dormem no quartel, têm quartos na cidade. Entre nós, comenta-se a impregnação no exército de ideologias da extrema esquerda, imbecil e ingénua, ou simplesmente parva, que está arruinar a revolução. Suspeita-se para breve de mais um golpe da extrema-direita.
O grupo terrorista ELP está em Espanha em preparativos para o assalto final ao poder, aliado à Igreja ultramontana, aos bombistas e incendiárias das sedes do PCP por todo o país, e ao capitalismo internacional.
Do golpe militar em preparação, ou do nome de Ramalho Eanes, nada sabemos. Do que desconfiámos é que o primeiro de qualquer dos lados, grupo dos nove, Copcon, Comandos da Amadora, Páras, Ralis, PM etc. etc., que puser a cabeça de fora, será decepado.
A guerra civil espreita. Nas barricadas de direita e armas passadas em segredo para os paisanos de esquerda. Tudo isto não deixa de me empolgar literariamente, mas concordo que não estamos em nenhuma Sierra Maestra, nem os guerrilheiros portugueses desleixados, com amor à pele mais que outra coisa, civis e militares, podem servir a Otelo para ser o Fidel da Europa, nem os americanos deixariam. Não obstante, apesar dos devaneios e erros, todos admirámos o romantismo do comandante de Abril. Só os românticos são capazes de grandes actos e Otelo não fugiu à regra. Portugal deve-lhe isso e nós contámos com ele, a grande força do Copcon, e mesmo doutro romântico corajoso, que vai tomar a bica de chaimite e impediu que o onze de março reaccionário triunfasse, Dinis de Almeida, do Ralis.

Contámos com todos para derrotar o ELP, o MDLP, a CIA as forças reaccionárias, a extrema-direita, e a Igreja ultramontana e criminosa que matou o padre Max, apesar da bagunçada deste quartel e dos outros de esquerda. Bagunçada com que o golpe militar secreto em preparação de Ramalho Eanes, Jaime Neves, grupo dos nove e outros se prepara para acabar, embora a esta hora ainda o não saibamos. Iremos sabê-lo mais lá para a madrugada. Por agora oiçamos Duran Clemente na televisão, a sonhar com o Che. Parece todavia que algo lhe corre mal. Que será?
Depois de ter apelado aos trabalhadores e ao povo unido para acorrerem ao estúdios do Lumiar da RTP, onde estava, escoltado por um grupo de páras, cercados pelos comandos, Duran Clemente suspende o discurso. Agitado, pergunta para alguém atrás das câmaras, invisível aos espectadores « Não posso falar? Não posso? Não posso falar, é isso? Então falarei mais daqui a bocado… pode ser?». Parece que não pode. Um destacamento de «boinas vermelhas» da Amadora, passe o significado da cor, por ordem de Eanes, ocupa as antenas transmissoras de Monsanto, juntando-se ao controlo pelos do golpe militar, dos estúdios do Porto e do emissor da Lousã, enquanto em Lisboa, Dinis de Almeida, à Fitipaldi para animar as hostes, saía de chaimite a tomar a bica habitual, e Otelo está em Belém às aranhas, metido entre os apelos dos militares gonçalvistas e dos radicais. Muitos: Costa Martins, Leal de Almeida, Cuco Rosa, Varela Gomes o lendário, Martins Guerreiro, Campos de Andrada etc., grande parte a quem a resistência ao fascismo e a revolução de abril ficaram a dever o triunfo, cujos disseram a Otelo que dissesse ao Presidente Costa Gomes, para afastar Vasco Lourenço do poder e de comandante da Região Militar de Lisboa.

Oito dias antes deste dia decisivo, o PCP tinha organizado uma gigantesca manifestação de operários da Lisnave e Sorefame, a que se juntaram os SUV, soldados unidos vencerão, e dezenas de milhar de outros manifestantes. O Terreiro do Paço, feito terreiro do povo, é pequeno para tantos brados e ira honesta. Mete medo, aquilo. A televisão mostra, e Otelo, fora de Lisboa, jura, emocionado, alegre e triste num só momento, que apesar dos seus inimigos a revolução socialista triunfará. O PCP gosta do que ouve e muitos camaradas, já esquecidos do camarada Vasco, gritam por Otelo. Este retribui, atarantado «Obrigado, povo amigo! O Otelo está contigo!» Tudo se encaminha para um final feliz.
Na Polícia Militar, onde já me encontro, poucos dias depois, é escrito e lido um manifesto de alguns oficiais, apelando ao Poder Popular, com base no documento do Copcon. Eu, e os oficiais recém-chegados, não somos ouvidos para a elaboração deste documento, assinado por nomes tão ilustres como, o major Tomé, segundo comandante deste regimento, os capitães Sobral Costa, Duran Clemente, Santos Silva, Mendonça da Luz, Cabral e Silva entre outros, tenentes Mário Rodrigues, Matos Pereira etc. etc. e o tenente-coronel Bilstein Sequeira, gente diferenciada de importantes unidades militares da região de Lisboa, RPM, EPAM, RALIS, FORTE DE ALMADA, SDCI, GNR, Engenharia 1, etc.. Manifesto que cai como uma bomba no país e mostra que a região militar da Capital está com Otelo e o Copcon. Toda? Não, há um grupo de duzentos comandos irredutíveis do quartel da Amadora que estão com o tenente-coronel António Ramalho Eanes, o comandante do golpe militar que agrupa o grupo dos nove, militares da ala moderada etc. cujo já está em acção com o ataque, no país, às antenas transmissoras da RTP e rádios. Duran Clemente é retirado do ar, substituído por um filme cómico do Danny Kaye. Um gozo! Acabo de beber a bica e, apesar da tragédia que se adivinha, não consigo, à saída do bar, onde os primeiros gritos de traidores começam a ecoar, de rir com a tragicomédia à portuguesa de tudo isto. Por pouco tempo, aliás! O pior iria começar em breve.
Dirijo-me para o quarto, na ala superior poente do imenso edifício, com vista para a rua das Amoreiras. Nos corredores comenta-se o caso televisivo, a tomada das antenas televisivas e de rádio, pelos comandos «Que porra é esta? O Copcon está a dormir ou quê? Onde é que anda o Otelo?». Daí a pouco um oficial, com quem, com mais outro, partilho o quarto, dá-me a notícia que os três comandantes da unidade, os majores Campos Andrada, Cuco Rosa e Mário Tomé, foram chamados pelo Presidente a Belém, talvez para se renderem, mas que não tencionam ceder nem apresentar-se. O prazo expira. O regimento, a menos que Otelo dê sinal de vida, o Ralis e outros quartéis do Copcon acordem e haja ordem para resistir, está entregue a si próprio. No quarto do RPM, apreensivo, um colega comenta «Como foi possível deixar os comandos tomar o GDCI e as antenas? Ninguém responde a estas ameaças? O melhor se calhar é hastear uma bandeira branca ali no portão da calçada…O que é que tu achas? – pergunta, dirigindo-se a mim. Quem as armou que as desarme! – respondo, a ler o jornal da tarde. Este gajo está maluco ó Nogueira! Parece que não aprendeu nada com o Bakunine ou lá o que é que o tipo anda a ler!». «Ouvi dizer lá em baixo, que os gajos do PCP vão encher a calçada de betoneiras para impedir qualquer ataque. Pois, pois, J Pimenta, acudiu sarcástico o colega do lado, aludindo ao célebre anúncio televisivo a esta firma e à grande célula comunista na mesma. Sabem que estão a passar armas cá de dentro para alguns grupos de civis? – Dizem que sim, mas já ouvi o mesmo na EPA de Vendas Novas. Devem ser mais as vozes que as nozes. Bocas da reacção! – atirei, pouco convicto.» Estávamos nisto, quando começamos a ouvir um sibilar estranho sobre o edifício e gritos na parada. Um de nós saiu e foi ver. Daí a pouco, alarmado, veio dizer que eram balas tracejantes, disparadas lá de baixo das bandas do Tejo ou doutro lugar, um belo fogo de artificio a encher a noite por sinal. Fomos ver. Curiosamente, passavam sobre o quartel e perdiam-se no escuro para poente.«Temos festa!» – comentou um, e como não sucedia mais nada, fomos dormir, passando por grupos que diziam ser aquilo um aviso dos comandos. « Ná! Não se atreviam! Nem chegam prà gente!», gabavam-se outros. «Os sacanas dos páras parece que já recolheram a quartéis. Bonita ajuda, não há dúvida!»
AQUI NINGUÉM SE RENDE! FOGO NELES

Dia 26, oito da manhã. Acordo de súbito a um estrondo de vidros estilhaçados. O quarto está cheio de pequenos bocados duma janela atingida por um objecto qualquer. Com cautela, espreito por uma das outras, intactas, e vejo uma silhueta dum soldado de boina vermelha, que, emboscado num talude da rua, alveja esta ala do edifício. Alerto os colegas, pegamos na G3 e nalgumas granadas, e tentamos arranjar um ponto seguro para respondermos ao fogo adversário, cientes de que se trata do ataque, mais ou menos previsto, dos comandos. No edifício reina a confusão. Enquanto respondemos ao fogo do lado poente, alguém informa que o quartel está cercado. Agachado, desloco-me para um quarto do lado nascente e vejo soldados nossos a correrem de arma em punho, a tomarem posição nas laterais da enorme parada, atrás de árvores, viaturas, varandas, o que for. Dali, reparo em soldados dos comandos que saltam da calçada da Ajuda, para dentro do nosso quartel. Chamo um colega e descemos as escadas do edifício. Cá em baixo, balas perdidas ricocheteiam em paredes e no cimento da parada. O inferno está instalado. Rajadas de metralhadora, fogo de bazucas, granadas que explodem por todo o lado. Centenas de soldados sem ordem nem regra acotovelam-se nas saídas das casamatas. Uns respondem, melhor ou pior, ao fogo inimigo, visando sobremodo a área do portão principal, na calçada da Ajuda, e os muros desse lado, por onde espreitam, ou saltam, os invasores. Outros, desmotivados com a falta de ajuda do Copcon, Ralis etc. que nunca mais chega, dos civis que no exterior debandaram ao primeiro tiro e não trouxeram as betoneiras, entram nos alojamentos em redor, largam as armas, sentam-se no chão, alguns com lágrimas nos olhos, e esperam que a crise passe. Em vão, os oficiais os mandam combater na defesa deles próprios e dos companheiros. Foi a isto que conduziu a bagunçada. Sem ordem nem autoridade aceite e reconhecida como vital num organismo militar convencional, de guerrilha ou guerra aberta, assalto, conquista ou defesa, para lá da justeza, ou falta dela, de qualquer combate, ninguém se entende no momento de matar ou morrer, sem ordem e disciplina. É duro isto e só demonstra a bondade da espécie, mas é também verdadeiro. Não é nisto, claro, que estou a pensar, quando uma chaimite dos comandos irrompe pelo portão principal destruindo-o, trazendo atrás de si mais soldados inimigos. Entretanto, um Aspirante, emboscado atrás duma árvore, chama-me a atenção para um comando que, de vez em quando, assoma no muro sobranceiro à calçada e dispara dali contra os nossos, emboscados em baixo, cujos alvejam os que tentam entrar a reboque da chaimite que arrombou o portão de entrada. Tento reposicionar-me quando reparo que o nosso Aspirante cai desamparado, atingido mortalmente. Um companheiro mais perto dele, acorre a ver se o pode resgatar. Tenta puxá-lo para o lado contrário da árvore àquele em que foi atingido. Não responde. Está morto. O fogo inimigo é agora devastador, depois que o portão foi destruído. Disparam de todo o lado, mesmo por um buraco na parte dele que resta de pé. Não vale a pena continuar aqui na parada invadida. Sempre a disparar, recuámos para o edifício, tentando suster o ataque a partir de lá. Alguém vem dizer que já matou um deles do lado poente. Parece que outro, um oficial, foi atingido junto a um muro da calçada. Subo ao primeiro andar, com intenção de proteger a entrada norte, com outro portão donde partem disparos. De cima, espreitando, vejo em baixo um comando, em cima de qualquer coisa, a disparar para dentro. Pego numa granada, ao mesmo tempo que reparo, por uma janela próxima, no major Mário Tomé, na parada, de braços no ar, tentando parar a guerra. É arriscado aquilo. A qualquer momento pode ser morto com um tiro. Fico a olhar, fascinado, aquele acto de bravura e quase me esqueço do soldado inimigo, em baixo, junto do portão. Fosse do que fosse, o fogo de ambos os lados abranda, há vozes por todo o lado a mandar cessar o tiroteio, minhas também, publicitando o gesto de paz do major Tomé. Finalmente, as armas calam-se. O soldado comando, a espreitar pelo portão, já não dispara. Nunca o saberá, mas foi este acto de coragem do nosso comandante, que lhe salvou a vida. Talvez tenha salvado muitas outras vidas, nossas e dos comandos, se aquele insensato tiroteio tem continuado mais tempo. Embora, era já tarde para evitar a morte inútil do nosso lado do Aspirante Baganha, e do lado dos comandos do Tenente Coimbra e do Furriel Pires. Podia ter sido um banho de sangue muito maior, tão inútil e insensato como o da morte destes infelizes. Quem começou isto? Não interessa. Como não interessa se Otelo nos traiu, aos companheiros de armas, e aos milhares de admiradores civis dele, na tragicomédia de ser o Fidel de Castro duma cena impossível na Europa. Se Cunhal traiu os seus camaradas radicais, prontos na Sorefame, na Lisnave, no J. Pimenta, no Couço, em Alpiarça, na Chamusca e em tanto lugar do Alentejo, como se veio a saber, armados, e prontos para o combate final contra o ELP, o capitalismo internacional, em nome da utopia marxista-leninista. Se o Ralis traiu, numa altura em que o seu comandante tinha ido tomar a bica de chaimite, enquanto os comandos atacavam o RPM, na calçada da Ajuda. A história, que tem as costas largas, sempre precisa que lhe sacrifiquem vidas e sangue para se apaziguar nos momentos de crise.

A estes três mortos, sacrificados neste último combate do Verão Quente de 75, o qual durou até ao verão de S. Martinho do novembro do mesmo ano, deve este país a chamada consolidação da democracia de abril e o fim da ameaça duma nova ditadura. Não sei se isto é verdade, ou apenas uma maneira de conciliar irmãos desavindos no plano militar, divididos pela demasiada influência que a extrema esquerda, em resposta às sucessivas intentonas da extrema-direita, 11 de março, 28 de setembro, bombistas, ELP, MDLP, e outras seitas extremistas de direita, capitalismo selvagem internacional, Igreja fundamentalista e arcaica com incitação ao ódio contra a esquerda em paróquias por todo o país, são igualmente culpados neste desenlace trágico.
Os vencedores deste dia e da história, Eanes, Mário Soares, Melo Antunes, Vasco Lourenço, Costa Gomes poderiam dizer de quem foi afinal a culpa toda e a vitória total. Nunca o fizeram, nem pediram para que esta data fosse celebrada alguma vez de modo constante, fim que foi dum processo revolucionário em curso, nem sempre justo ou correcto, como são todos, iniciado, no caso de alguns combatentes, de lados opostos, mesmo antes do 25 de abril contra o fascismo. Mário Tomé e Vasco Lourenço, de campos opostos neste dia, disseram, há pouco, que o importante é unir e não dividir. A extrema esquerda, UDP, MRPP, PRP etc. sim, perdeu e bem a sua influência perniciosa, aventureira, solipsista, no plano militar neste dia 25 de novembro. O Poder Popular como utopia, talvez generosa, também perdeu, e para sempre, o que não deixa de me entristecer em nome do grande artista e genial compositor que foi Zeca Afonso, que como tantos dos que depois fingiram que não, acreditou nele.
Então por que quer agora a extrema direita celebrar este dia? Mas, sim, talvez deva ser lembrado, não digo celebrado, nos cinquenta anos dele para o próximo ano. No Parlamento nacional, por uma vez e nunca para substituir o 25 de abril, para acabar também de vez com o cavalgar desta data por parte de extremistas de direita e pequenos tartufos que nada têm a ver com ela, homenageando os mortos de ambos os lados, unindo e não dividindo. Como o 25 de novembro, com erros, ingenuidades, tragédia e sangue, no fim de contas também uniu, juntando de novo no caminho da democracia, até ver, irmãos desavindos.
Mário Rui Silvestre