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Leituras inextinguíveis (125): África no Feminino

A guerra colonial foi feita pelos homens, mas nela participaram mulheres e nem sempre na retaguarda: elas começam a ser, finalmente, a ser tratadas como objeto e sujeito históricos

Participei na guerra da Guiné entre 1968 e 1970. Dei pela presença das mulheres logo em Bissau, quando ali cheguei levava uma carta de recomendação da minha irmã para um médico, Pedro Abranches, mal podia imaginar quando lhe bati à porta que aquela sua casa, durante as visitas que fiz a Bissau, foi antro de acolhimento graças à Luísa Abranches, sua mulher. Em Bambadinca, sede do batalhão das unidades que comandei no regulado do Cuor, impunha-se a presença da mulher do comandante, D. Maria Alzira Pimentel Bastos, presença agradabilíssima, ia para a cozinha na messe de oficiais fazer rissóis de peixe e empadinhas, uma senhora que introduziu a bonomia e uma atmosfera minimamente familiar naquele quartel. Veio depois a mulher do médico, Isabel Payne, as duas senhoras melhoraram o design interior até o mobiliário tornou o espaço quase caseiro. Por fim, o chefe da secretaria, o tenente Pinheiro, trouxe a mulher e filhos pequenos, a senhora fez o possível por se adaptar, andava pelas crianças por todo o espaço do quartel, percorria a povoação, os miúdos ainda não estavam em idade escolar, correu tudo muito bem até que na noite de 28 de maio de 1969 Bambadinca foi flagelada, não ganhou para o susto, quis ser imediatamente recambiada para Lisboa, não mais houve presença feminina nem filharada de oficiais em Bambadinca.

Não esqueço, como é óbvio, as enfermeiras paraquedistas que vieram resgatar feridos de diferente índole, não tenho dúvidas daqueles casos em que elas próprias sabiam que estavam a evacuar moribundos sem retorno, mas cumpriam carinhosamente os ossos do ofício.

Margarida Calafate Ribeiro
Margarida Calafate Ribeiro

Não conheço melhor livro sobre a presença das mulheres na guerra colonial do que o trabalho de Margarida Calafate Ribeiro intitulado África no Feminino, Edições Afrontamento, 2007. Bateu à porta de mulheres que acompanharam os seus maridos em Angola, Guiné e Moçambique e disse-lhes: “Sei que esteve em África. Quer contar?” O resultado é este alinhamento prodigioso, intenso, inequivocamente sincero, onde estas mulheres, maioritariamente com formação superior e todas elas com habilitação escolar, umas domésticas outras já tendo atividade profissional, vão falar sobre a sua formação, onde e como estudaram, o que sabiam ou não sabiam sobre a guerra, se casaram com militares do quadro permanente ou milicianos, e daí a riqueza destes depoimentos que facilmente nos permitem concluir que as mulheres foram sujeitos históricos e peça fulcral para uma memória coletiva da guerra colonial.

Obviamente que são depoimentos muito personalizados, mulheres de formação conservadora ou criadas em meios vincadamente oposicionistas, partiram para África desconhecendo as culturas onde se inseriram, vivendo por vezes em espaços exíguos e desconfortáveis, mas confiantes que a sua companhia era mais do que um dever. Há depoimentos em que o testemunho ganha um peso abrangente, são como que um olhar coletivo de todos aqueles figurantes da guerra, como uma testemunha observa:

Ao tentar contar, lembrar-me corretamente, perceber, conservar, sinto-me sempre hesitante em isolar as pessoas, especialmente as mulheres, como visitantes ainda mais alheias, porque mais alheadas de qualquer razão de lá existir que não fosse a sua privada teimosia em viver com o seu marido ou com o seu amor. Mais ridículo me parece, como mulher, falar da minha paralela experiência de tropa e de tropa da guerra, quando já antes de eu nascer as mulheres por lá passavam por conta própria. Mas talvez assim possa chegar ao que em mim ainda trago de tudo o que uns dos outros aprendemos e talvez assim dê enfim voz àquilo de que não se fala. Dar voz às humildes mulheres dos soldados, a trabalhar nas lojas ou sabe Deus em que mais, essas completamente isoladas, porque eram raras. Contar da aflição e da saudade das que cá ficavam acabando por casar por procuração, às vezes, não havia dinheiro nem tempo para mais viagens, iam sem saber para quê, de debaixo da asa dos pais passavam para a da dos maridos, às vezes também por insistência deles. Viam-se perdidos, não aguentavam aquilo sozinhos. E falar também das mulheres dos profissionais, de certo modo casadas com o Exército, teimosamente recriando um lar com filhos pequenos, no terror constante de que aquilo não durasse, enxertando à sua custa nos quartéis e na guerra uma vida paralela, familiar e doméstica, que afastasse para mais longe os mitos do país, da segurança, da família, à sua custa carregando a hipócrita intenção de uma ocupação pacífica. Penso que todas, de diferentes modos, tentávamos instintivamente fazer companhia umas às outras, íamos diretamente buscar a face escondida, fraterna e universal. Falávamos, conversávamos, contávamos coisas de vidas anteriores. Assim conheci a face escondida, delicada e rica de muitas mulheres vulgares e aparentemente sem interesse.”

Estes depoimentos não escondem o deslumbramento que África lhes provocou. Há um testemunho de uma mulher que viveu só na Guiné que não esqueceu aquela variedade étnica e religiosa que a deslumbravam, como ela se entusiasmava nas horas livres a percorrer as lojas onde comprava tecidos que ela própria fazia vestidos. Mas era o trabalho de professora que constituía o seu contacto com a realidade da vida da Guiné, deu conta da delicadeza dos seus alunos, aplicados e interessados, dava aulas a turmas muito misturadas, gente de todas as etnias da Guiné, não faltavam cabo-verdianos, libaneses, alguns brancos filhos de militares e funcionários. A Guiné ficou-lhe para toda a vida, como testemunha: “Ainda hoje, sempre que oiço qualquer coisa da Guiné ou encontro alguém, fico muito comovida. Fiquei com uma grande ligação. Ali ficou um bocadinho de mim, não sei explicar.”

Há quem não queira esconder a mágoa: “Vi muito sofrimento, rapazes sem culpa nenhuma de repente sem pernas, sem braços ou mortos. Por que é que aqueles rapazes morreram, por que é que aquela gente tão nova sofria daquela maneira, por que é que cortavam as vidas assim? De África recordo com muita saudade tudo o que pude recolher, tudo o que pude aprender com as pessoas, a cultura, o conhecimento de África é fascinante. Eles tinham direito à independência, não havia mais espaços para colonialismos, o mundo era outro. Mas hoje, quando encontro alguns antigos alunos guineenses e eles me dizem que estavam melhor com os portugueses, fico sem saber o que pensar.”

Obra indispensável para conhecer olhares femininos sobre a guerra colonial, um brilhante alinhamento das narrativas, uma abordagem singular e é o nosso dever de memória coletiva – porque estas mulheres estiveram na guerra, em frente de retaguardas, o seu testemunho é imperativo no puzzle de todos os olhares, de quem combateu em ambos os lados.

Mário Beja Santos

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