Há dias que nunca se esquecerão! Esses dias representam o futuro da humanidade. Perceberão no fim do texto.
Ouça aqui a crónica no podcast:
A chegada ao porto de Narbonne tinha sido um bálsamo, o camping estar fechado foi uma sorte. Encontrei dormida num pequeno hotel no centro da cidade. Tomei banho, comi o que restava, segui para visitar o centro histórico. Eis que começa uma carga de água que deve ter durado toda a noite. Devo ter dormido umas 10h… Quando acordava era com a chuva. Às 9h da manhã ainda chovia. Preparei o poncho, deixo abrandar e, mesmo sem comer, meto-me pelo canal de Robine para voltar ao canal du Midi.
Lama + lama, chuva + chuva… A dado momento, uma vedação e um sinal de obras cortam o caminho, volto para trás… Apanho uma saída para uma estrada e sigo em direção à Cuxac-d’Aude na esperança de lá encontrar um café ou supermercado onde comprar comida.
Ledo engano… Volteei por ruas e ruelas, perguntei e perguntei, a resposta era sempre a mesma “é difícil”…
Pensei seguir para Capestang e assim evitar entrar na lama, pergunto a uma senhora por um café e a resposta foi: “venha comer a minha casa”! Pensei que tinha percebido mal e agradeço, só queria uma indicação de algum estabelecimento mais próximo. A senhora insiste: “moro aqui, vou abrir a garagem para a bicicleta não ficar à chuva” e foi logo abrir a garagem…
Aceitei a graça concedida. Descalço as sapatilhas cheias de lama e as meias vão deixando o rasto molhado. Manda-me sentar a mesa, apresenta a filha e o gato e traz meia pizza… Depois bebi duas canecas de café. Ofereceu fruta e iogurte, agradeci mas já estava bem. A conversa desenvolve-se bem com a filha, veterinária, e ela. Falámos de viagens em bicicleta e em moto, de associativismo social, em francês e em espanhol, como dava… Tirámos um foto para mostrar ao marido e ofereci préstimos em Portugal.
Antes de sair insistiu que eu trouxesse 4 bolos da kinder, aceito e volto a agradecer.
Nem 10 km passados já os bolos começavam a estimular o palato. Em Capestang apanho o Midi e volto à lama. A partir de Colomniers surge uma belíssima ecovia.
Pelo caminho há encontros: um velho que morava no próprio barco quis saber o que andava a fazer, um jovem meteu também diálogo, uma ciclista alemã pede informações: estava a fazer o Midi em sentido inverso, mais uma hora de conselhos e conversa…
Tenti passar pelo Túnel de Lamas mas as barras de ferro impediram-no…
São já 17h quando chego às lindas e famosas nove Écluses de Fonseranes.
Um grupo de franceses mete conversa… Falámos da viagem, do que conheciam em Portugal, de ser pré-reformado.
Quando digo que penso chegar a Séte desaconselham, ainda faltavam uns 50 kms… Uma senhora puxa do telemóvel e começa a procurar alojamentos… Falo em hostel… Devem ter pensado que eu não tinha dinheiro pois começaram a dizer que davam se fosse preciso…
Agradeço, volto a agradecer, tiro duas fotos ao canal e sigo para Béziers…
Procuro o Ibis e cá estou…
Há dias que não esquecerei. Acima de tudo valem para mostrar a todos nós que a esperança na humanidade deve estar no centro da nossa vida.
O mundo não é a perceção de violência e desconfiança que as TVs transmitem. Os povos podem gerar solidariedade com imigrantes ou pobres ou, simplesmente, entre todos nós.
A comunidade pode ser isso mesmo: paz, fraternidade, justiça. Tanto tempo de (des)esperança na justiça! Até Marx e Engels lutaram pelo crescimento da “Liga dos Justos”…
Hoje choveu torrencialmente, mas o sol brilhou e até se pôs em tons vermelhos!
Vítor Franco
Béziers, Canal du Midi, 4 de outubro de 2021
(Reposição de algumas crónicas publicadas, à data, no meu perfil de Facebook)
Poderá também ler e ouvir:
https://maisribatejo.pt/2021/11/06/abc-de-uma-viagem-em-bicicleta-pelo-canal-du-midi/