O romance Todos os Nomes, por José Saramago, teve a sua 1ª edição em 1997, edição conjunta da Editorial Caminho e Círculo de Leitores, escolho a capa desta editora, é uma pintura de Caspar David Friedrich, Entrada de Cemitério, está patente na mais importante galeria de arte de Dresden.
Na Conservatória Geral do Registo Civil, onde se cruzam as informações sobre os vivos e os mortos, o seu funcionalismo está claramente hierarquizado, “os elementos de cada categoria têm o dever de executar todo o trabalho que lhes seja possível, de modo que só uma mínima parte dele tenha de passar à categoria seguinte. Isto significa que os auxiliares de escrita são obrigados a trabalhar sem parar de manhã à noite, enquanto os oficiais o fazem de vez em quando, os subchefes só muito de longe em longe, o conservador quase nunca.” Tudo organizado em duas grandes áreas, os arquivos e ficheiros de mortos e arquivos de vivos. “Os papéis daqueles que já não vivem encontram-se mais ou menos arrumados na parte traseira do edifício, cuja parede de fundo, de tempo a tempo, em consequência do aumento imparável do número de defuntos, tem de ser deitada abaixo e novamente levantada uns metros adiante.” É numa operação de rotina que o Sr. José, um dos auxiliares da escrita, vai buscar uns verbetes, acidentalmente junta-se um documento referente a uma mulher, o Sr. José intriga-se, pretende investigar, ele que já tem muito que fazer nos seus lazeres de homem só, forja dossiês de celebridades de toda a ordem, inclui até um bispo.
Vive numa casinha com ligação direta à Conservatória, o verbete daquela senhora não lhe dá descanso, põe-se a pesquisar, bate à porta da vizinhança, acabará por ser recebido por uma velha senhora, madrinha de quem ele quer saber mais, a senhora faz-lhe confidências, houve para ali uma infidelidade com o pai da dita menina, mudaram de residência, o Sr. José continua, há algo de novo na sua atitude, ele que tem um currículo de funcionário metódico, que coleciona pessoas famosas, que tem medo das alturas e das teias de aranha, sempre a pôr as mãos no caos dos mortos, o nome daquela menina há de interessá-lo muito, sabe onde ela estudou, meteu-se numa peripécia de todo o tamanho, entrou como um ladrão furtivo na escola para saber mais sobre a dita menina, anda exasperado, saberá mais tarde que a dita menina será professora na escola, e de matemática, nunca um ser humano, ao que parece, lhe despertou tanto interesse, ninguém o poderia imaginar como assaltante a arrumador de arquivos, volta doente à Conservatória, o conservador, saindo da posição sacrossanta que ocupa, interessa-se pelo seu estado de saúde, a sua atitude solícita assombra os funcionários da Conservatória, o Sr. José tem direito ao repouso e um enfermeiro até lhe trata das mazelas das escoriações advindas do assalto à escola, fora-lhe diagnosticada uma gripe de todo o tamanho. O tesouro que trouxe da escola é uma quantidade de verbetes, tem várias fotografias da menina, descobrirá que a menina foi casada, vai batendo às portas, quer juntar peças do puzzle, depois a professora de matemática divorciou-se, bem gostaria o Sr. José de perguntar aos colegas se podiam, por casualidade, o verbete da dita senhora. À noite, e furtivamente, entra na Conservatória, circula no espaço dos mortos que começa necessariamente onde acaba os espaços dos vivos, desloca-se com fio de cordel para não se perder no emaranhado de tantos arquivos, ele cogita muito, “tens mais do que a obrigação de saber que estes mortos não são a sério, é uma exageração macabra chamar a isto o arquivo deles, se os papéis que tens na mão são os da mulher desconhecida, são papéis mesmo e não ossos, são papéis, e não carne putrefacta, esse foi o prodígio obrado pela tua Conservatória Geral, transformar em meros papéis a vida e a morte, é certo que quiseste encontrar essa mulher, mas não chegaste a tempo.”
Os elementos esclarecem que a dita mulher faleceu, dir-se-á adiante que em circunstâncias trágicas, o Sr. José possui informações sobre onde vivem os pais da falecida, a mãe, à socapa, empresta-lhe a chave de quem está no cemitério, ele percorrerá toda a habitação, não encontra mais respostas. Então, chega o momento azado de ir até ao Cemitério Geral, por acaso em frente da Conservatória Geral do Registo Civil, são edifícios parecidos, chegará mesmo ao talhão onde julga encontrar quem lhe dominou a curiosidade durante tanto tempo, por ali encontra um pastor que confessa que muda regularmente as tabuletas dos falecidos, justifica o seu procedimento dizendo-lhe que não há maior respeito que chorar uma pessoa que não se conheceu. O Sr. José, que se revelara tão ofendido pelo comportamento do pastor, também foi trocar os números das sepulturas.
E o romance caminha para o seu ponto culminante, o Sr. Conservador já informara o pessoal da Conservatória Geral que era preciso uma nova ordem para os arquivos e ficheiros. O Sr. José enceta as últimas diligências, volta a falar com a madrinha da falecida, decide que é inútil procurar contactar o ex-marido, a conversa com os pais dela dera-lhe a saber que ninguém previa tal desfecho, nem o diretor da escola opinou algo que esclarecesse sobre a morte daquela professora de matemática. Consumadas todas as diligências, volta para casa, para surpresa deste auxiliar da escrita, o conservador está à sua espera, leu o diário que o Sr. José escreveu sobre estes acontecimentos, leu os verbetes, está a par do processo da mulher desconhecida, pede-lhe pormenores sobre a ida ao cemitério. Então o conservador sugere-lhe que faça um verbete novo desta mulher que o Sr. José continua sem nada saber. “No processo da mulher desconhecida falta o certificado de óbito. Enquanto não o encontrar essa mulher estará morta, Estará morta mesmo que o encontrem, A não ser que o destrua.” O Conservador sai de cena, há agora que queimar o original, aliás no arquivo está o certificado de óbito. “Atou uma ponta do fio ao tornozelo e avançou para a escuridão.”
É um romance fabuloso sobre a pesquisa sem fim, a curiosidade humana dentro de um universo aterrador e fantástico onde preside um personagem solitário, um homem descolorido que organiza vários dossiês de pessoas famosas e por puro acaso se lança no encalço de uma mulher desconhecida que irá desaparecer enquanto decorre a investigação. Universo centrado numa burocracia extrema onde há um fio ténue que separa a vida e a morte na gigantesca Conservatória Geral do Registo Civil. E até o sacrossanto Conservador, que acompanhou, com maior discrição, as diligências de Sr. José, lhe sugere que a mulher desaparecida mude de estatuto, destruindo a documentação. Porque todos os nomes se misturam, os dos vivos e os dos mortos.
De leitura obrigatória.
Mário Beja Santos