Os Jogos Olímpicos ocorreram. Os brilhos e os escuros emergem. O jogo limpo permanece no reino da utopia. O esforço olímpico dos atletas, dos treinadores, dos familiares não pode ser obstruído pela indignidade de alguns e pela sociedade que os esconde. Como disse a ginasta americana Simone Biles: Culpo Nassar e todo o sistema que permitiu o abuso sexual e o perpetrou.
Ouça a crónica no podcast:
Qualquer relação de abuso encerra desnível hierárquico. É então um jogo entre o poder do abusador e a necessidade da vítima. O intocável e a perda da carreira, do emprego. O bater palmas entre pares e o esconder. Sim, o trauma de um abuso provoca vergonha e medo da exposição pública. Cria na vítima um mecanismo de defesa para suportar o insuportável. E fá-la dissociar de si própria, ou seja, destrói parte do seu eu a vários níveis, íntimo, familiar, social, laboral. E apenas poucas vítimas decidem testemunhar muito tempo depois. Aquelas que atingem lugares de relevo nas suas carreiras, que já nada têm a perder. E sentem-se psicologicamente fortes para aguentarem o julgamento público. E a verdade é que só aí as ouvimos.
Ana Bispo Ramires, Psicóloga de desporto e performance, defende que o analfabetismo emocional que nos caracteriza, a falta de empatia e a anestesia emocional que escolhemos (consciente ou inconscientemente) viver, leva-nos a passar aceleradamente por todas as situações que possam transportar-nos para uma dimensão de desconforto ou confronto com o outro – e a “tribo dos abusadores” agradece este comportamento tipo “rebanho” que vamos tendo, pois permite-lhes experienciar uma espécie de manto magico de omnipotência que faz com que nem sequer se preocupem em “esconder o seu rasto”, dando-se ao luxo de até deixar bem visíveis parte dos seus instrumentos de abuso e assédio (no caso, as mensagens). [1]
E a verdade é que carecemos do sentido de comunidade, o importarmo-nos com os outros. E ocorre-me o poema de Brecht:
Primeiro levaram os negros
Mas não me importei com isso
Eu não era negro
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso
Eu também não era operário
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso
Porque eu não sou miserável
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém
Ninguém se importa comigo
Ana T. Freitas
[1] Abusadores e vítimas de abuso: uma história (sempre) mal contada, 04.10.2022, Ana Bispo Ramires, Psicóloga de desporto e performance. https://tribuna.expresso.pt/opiniao/2022-10-04-Abusadores-e-vitimas-de-abuso-uma-historia–sempre–mal-contada-e590d424.
Quando a Indignação e revolta
já não cabe em palavras, resta-me: Boa defesa, Ana T. Freitas!
Grata, Júlia Miguel, por mais este comentário pertinente.
Crónica de tema acutilante. E não sendo apenas no desporto… será melhor darmos atenção e considerarmos importante o que se passa, tanta vez, mesmo ao nosso lado. É que um dia poderemos ser cada um de nós a vítima.
Grata, Francisco Queiroz, pelo comentário. Sem dúvida, nos mais diversos campos.