Os Homens e Os Outros, de Elio Vittorini, surgiram na coleção Livros da Três Abelhas, Publicações Europa América, em 1960. O autor italiano tem como palco a luta patriótica centrada na cidade de Milão: Será porventura um tanto autobiográfico. Ele entrara na resistência italiana e estivera preso pela polícia de Mussolini. Eu era adolescente, lia pela primeira vez uma história de luta de libertação em Itália, passada no inverno de 1944, talvez o mais calmo que tinha havido desde um quarto de século. Cidade dominada pelas hostes fiéis a Mussolini, com as suas milícias, tendo à frente o implacável Cão Negro; e os alemães, senhores da situação, ou assim se considerando.
Anos mais tarde, quando li Kaputt, de Curzio Malaparte, porventura a obra que melhor escalpeliza os horrores de qualquer guerra, senti as ressonâncias do livro de Vittorini, e até me perguntei por que a Censura não apreendera um documento em que resistentes italianos põem bombas, destroem vias, executam elementos do exército alemão e da milícia italiana.
O que a memória guardara da leitura deste romance manifesto era a fluidez dos diálogos, frases curtas, o encanto que se estabelecera entre Berta e ENE 2, o protagonista, aparentemente frio e individualista, irá procurar mais tarde um frente a frente com o Cão Negro. E há os resistentes como Orazio e Metastasio, outro mais, com nomes inesquecíveis como Barca Tartaro, Pico Estudante, Filho-de-Deus, El Paso; e, não menos importantes, o capitão Clemm e Cão Negro, o comandante da Muti, a milícia que se assemelha às SS.
Tudo começa pelo reencontro entre Berta e ENE 2, uma chama que se reacende, o resistente vive em casa de Selva, uma companheira de luta, os dois dialogam quanto ao sentido porque fabricam jornais clandestinos, porque aceitam morrer fuzilados, fabricar bombas, para que os homens sejam felizes têm que ser livres de tiranos, despedem-se, o resistente tem encontro marcado com outros camaradas de luta, prepara uma cilada a militares alemães, e depois têm que fugir à pressa dos homens do Cão Negro.
Em encontro clandestino, discute-se a sorte de 40 seres humanos que vão ser fuzilados em resposta à ação dos resistentes. Como vai haver a farsa de uma reunião de tribunal, é sugerido e aceite uma outra ação que leva à morte dos juízes. É dentro desta formulação de pequenos capítulos, e de uma escrita medularmente simples, que Elio Vittorini vai apresentando os resistentes:
“Coriolano era um homem simples: tinha uma cara aberta e boa, e estava sempre a dizer ‘Eu não sei.’ Mas Mambrino também tinha boa cara, uma cara redonda e boa. E Barca Tartaro tinha-a firme e boa. Pico Estudante tinha-a espera e boa. Todos estes homens são simples, eram pacíficos, e os dois rapazes dos automóveis, Metastasio e Orazio, eram como eles.
Tinham cada um deles uma família, um colchão em que queriam dormir, pratos e toalhas em que queriam comer, uma mulher com quem queriam estar; e os interesses deles não iam muito além de tudo isso, eram como as conversas deles.
Por que lutavam agora?
Por que viviam como animais acossados e arriscavam a vida todos os dias? Por que dormiam com uma pistola debaixo da almofada? Gracco tinha curiosidade de conhecer os homens: queria saber o porquê das coisas deles.” Seguem-se páginas de apresentação destes combatentes, conversa-se sobre as suas aspirações e a narrativa muda inesperadamente de rumo, vamos conhecer os mastins que podem devorar homens, como irá acontecer numa descrição tétrica em que o capitão Clemm manda despir alguém que matara um cão, os mastins cheiram a roupa e o capitão açula-os, o castigo é que o matador do cão seja devorado por outros cães.
E vai começar a terrífica operação de execução dos falsos juízes que estão a escolher numa lista de 300 nomes 40 homens para serem fuzilados sem interrogatório, sem defesa, sem mesmo uma acusação concreta. É nisto que saem dos automóveis homens com metralhadoras, é uma luta sem quartel, morre gente de ambos os lados. Berta volta a Milão para se reencontrar com ENE 2. E segue-se um acontecimento que me lembra exatamente a prosa de Curzio Malaparte. No Largo Augusto estão expostos, passados pelas armas, dois rapazes de 15 anos, uma rapariga, duas mulheres e um velho, o espetáculo tétrico é vigiado pela milícia e a população desfila, guardando para si a indignação.
Elio Vittorini destaca aqueles molossos que acompanham os alemães também para avivar a indignação do leitor, de igual modo como se fixa naquele velho que ali jazia nu, a contemplar os executados:
“No homem existe um velho esquálido que dorme nele há séculos. Nós é que não nos lembramos; é o nosso pai que construiu a arca, o nosso pai operário; trabalhou, embriagou-se, e agora dorme com um sorriso, nu através dos séculos.
Magro, escaveirado, os olhos encovados num rosto sombrio, um homem no meio da multidão olhava os mortos que tinha à sua frente e inclinava-se sobre os pés deles. Indicava, aos que o rodeavam, os pés dos mortos.”
Berta irá também contemplar os mortos, vê também aquele velho que contempla os executados, gente envolta em farrapos ou tapados com cobertores. Berta voltará a encontrar-se com ENE 2, declara-lhe o seu amor, quer ser sua mulher. O capitão Clemm impõe aos italianos a escolha de 100 homens para execução e é nesse contexto que Guilaj, numa cena de pleno horror, será entregue aos cães. Assistimos à cena da escolha dos executados, seremos parte integrante de uma festa orgia organizada por alemães. Entretanto, ENE 2 é reconhecido por alguém, a máquina de informação na trupe fascista irá preparar o reconhecimento do seu refúgio. Os resistentes pedem insistentemente a ENE 2 para partir, ele diz que não, quer um encontro com Cão Negro, é uma fórmula primorosa a desta arquitetura da escrita com diálogos cada vez mais acelerados. E tudo termina quando um resistente vai executar um alemão e consegue vê-lo debaixo das vestes de trabalho humano, não consegue matá-lo, achou que ele estava muito triste, interpelado asperamente dirá que aprenderá a fazer melhor, por enquanto há os homens e há os outros.
Penso que este tipo de literatura não resistiu ao tempo, aquela guerra já não incomoda as novas gerações, como, aliás, os temas abordados por outros autores contemporâneos como de Vittorini como Alberto Moravia, Carlo Levi, Giovannino Guareschi ou Curzio Malaparte, perderam audiência nesta sociedade de consumo e comunicação, são, quanto muito, alvo de teses universitárias. Mas eu era adolescente e fui tocado por esses homens que pretendiam ser felizes longe da tirania.
Mário Beja Santos