A Máquina do Ódio, Notas de uma repórter sobre fake news e violência digital, Companhia das Letras, 2020, não é propriamente uma leitura do passado, é uma viagem pelo pesadelo do ódio e da violência nas redes sociais, com predomínio especial no Brasil e nos Estados Unidos (não esquecer 2020 é o ano explosivo da covid-19) mas não escapam as observações sobre regimes autoritários, despóticos e até mesmo as chamadas democracias iliberais, caso da Hungria de Orbán.
A autora, Patrícia Campos Mello, é uma das maiores jornalistas brasileiras da atualidade, há mais de 25 anos que cobre relações internacionais, direitos humanos e economia global, o que a levou a percorrer, a Síria, o Iraque, o Afeganistão, a Turquia, a Líbia, o Líbano e o Quénia, fazendo reportagens sobre os refugiados e a guerra. Cobriu a epidemia do ébola na Serra Leoa e a covid-19. Ela vem desvelar é como a direita radical intimida nas redes sociais com fake news, são projetos sabiamente orientados para manipular, difamar, intimidar, estes fanáticos põem ao seu serviço empresas do marketing digital, usam trolls patrióticos que se disseminam no Twitter, no Facebook, no Instagram e no WhatsApp. Todo aquele que denuncia estes projetos antidemocráticos é alvo de campanhas de ódio através de linchamentos mediáticos, ameaças de morte. Foi o caso de Patrícia Campos Mello quando publicou a primeira de uma série de reportagens sobre o financiamento do disparo em massa do WhatsApp, os esquadrões de Bolsonaro usaram toda a artilharia desde a ofensa à honra à insinuação de que a jornalista se prostituía para obter notícias.
A autora vai desvelando o teor das notícias falsas e a sua injeção nas redes sociais, quem não é por Trump ou por Bolsonaro ou Orbán é antipatriota e mesmo comunista; nas Filipinas, na Índia ou nos Estados Unidos há políticos que recorrem a exércitos de trolls e bots para construir narrativas que os favoreçam. É este o novo mundo em que vivemos: os factos podem ser moldados ao sabor do capricho e da intencionalidade política. No passado, os fanáticos nacionalistas e os antidemocratas fizeram propaganda na rádio e na televisão, o que conta hoje são fundamentalmente as redes sociais, ameaça-se permanentemente a imprensa livre ou esta é liquidada por falta de apoios, é o caso da Hungria e da Turquia. A mentira é repetida obsessivamente. Quando perdeu as eleições, Trump afirmou e continua a afirmar que houve fraude, dizendo que milhões de imigrante ilegais, que não podiam votar, tinham votado nos democratas; nunca apresentou provas e todas as investigações efetuadas demonstram que não houve qualquer logro. E a autora observa as dificuldades de detenção em descobrir quem e como intoxica nas redes sociais: “No WhatsApp, é virtualmente impossível detetar a origem de uma mensagem ou de determinado conteúdo. O WhatsApp não quebra a criptografia, o que significa que não se pode saber quem mandou o quê, ou para quem. Podem-se obter metadados de uma mensagem, como o IP (Internet Protocol), o número que identifica e localiza um computador ligado à rede. Mas isso depende de uma ordem judicial, e mesmo assim muitas vezes a plataforma nega parte dessas informações, alegando o seu compromisso de proteger a privacidade do utente. Nas redes sociais, é corriqueira a prática do astroturfing, a disseminação de conteúdos recorrentes a terceiros – robôs, números de telefone estrangeiros, sites políticos, entidades ou pessoas sem relação direta com as campanhas políticas – assim camuflando os verdadeiros autores.”
As reportagens vão desvelando, no caso do Brasil, quem apoiava Jair Bolsonaro nos sites, criou-se uma infinidade de grupos no WhatsApp e Facebook com influenciadores digitais, com Bolsonaro e os seus três filhos políticos à cabeça. A calúnia é uma arma, distorcem-se declarações, recorre-se claramente à homofobia, a autora elenca mesmo as agências que oferecem aos políticos listas com números de telemóveis, por vezes com segmentação por uma região geográfica, classe de rendimento, numa tentativa de chegar mais eficazmente ao portador.
As democracias iliberais e a direita radical no seu conjunto odeia a imprensa livre, é um dos seus pesadelos e carros de combate: cortam-se os apoios financeiros: elimina-se a publicidade do Estado, usam-se as redes sociais para acusar marxistas e comunistas e todo e qualquer que demonstre as besteiras das declarações dos políticos dessa mesma direita radical, quando se demonstra por A+B que tal declaração é delirante segue-se uma enxurrada nas redes sociais a acusar de antipatriotismo e de instinto persecutório. Bolsonaro chegou a dizer a um jornalista que o incomodava com perguntas que ele tinha “uma cara de homossexual terrível”, e este assassinato era uma das suas regulares peças na estratégia de comunicação digital.
Estes populistas mentem descaradamente, caso de Trump que no dia da tomada de posse agradeceu a Deus o bom tempo, a autora estava presente, chovia sem cessar, como é que era possível mentir com milhões de pessoas a assistir ao evento? É possível porque se vive na era da pós-verdade. Este mesmo presidente que afirmou ter tido a mais grandiosa manifestação da tomada de posse que qualquer outro presidente, quando confrontado com a mentira, mostrando-se a receção triunfal dada a Barack Obama teve a seguinte resposta: os jornalistas são os seres humanos mais desonestos da face da terra.
Patrícia Campos Mello também recorda a estreita relação entre Bolsonaro e Steve Bannon, alguém que foi muito querido de Trump, depois zangaram-se. Bannon vendia a doutrina para levar os populistas ao poder, argumentando que o combate ao comunismo está no topo das argumentações. “Comunismo na visão dos tecnopopulistas, abrange qualquer coisa à esquerda do fascismo, englobando desde a social-democracia até o neoliberalismo económico.” A autora pôde confirmar quando cobriu as eleições da Índia como trabalharam as empresas do marketing digital para criar uma imagem muito favorável a Modi.
É um livro que nos surpreende pela tenacidade e bravura da jornalista, disposta a enfrentar todos os perigos. Ajuda-nos a compreender a diferença radical entre o jornalismo militante que não tem qualquer compromisso com a exatidão das informações com o jornalismo de credibilidade, onde a palavra-chave é a transparência, e despede-se com uma chamada de atenção:
“Ao tornar-se um estandarte de resistência ao Governo, a comunicação profissional adota uma postura de oposição. Por mais que sejam atacados e achincalhados pelos ocupantes do poder, os veículos jornalísticos precisam de se lembrar, todos os dias de que o seu papel não é apoiar ou de se opor a Governos. A tarefa primordial é de investigação igualmente Governo e oposição, esquerda e direita, de forma apartidária. Se a imprensa não resistir aos Governos populistas, à manipulação das redes sociais e à recessão económica, vão sobrar apenas os blogues e sites partidários, que não relatam nem analisam factos, apenas corroboram crenças. Isso não é informação.”
Não se pode ser mais claro com a merecida falta de credibilidade que nos deve merecer todo e qualquer jornalismo partidário, seja qual for o seu grau de fanatismo.
Mário Beja Santos