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Leituras inextinguíveis (134): O temor das secas nordestinas brasileiras, o feudalismo e a submissão dos pobres

Vidas Secas é publicado no Brasil em 1938, conhece a sua primeira edição em Portugal em 1960, edição que teve o prefácio de Jorge Amado, um tocante enaltecimento deste invulgar escritor tardio que impressionava os mais novos, que tinham, até então, referentes como Rachel de Queirós, José Lins do Rego, Erico Veríssimo, entre outros.

Graciliano Ramos

Graciliano chamou logo à atenção com os seus livros Caetés e São Bernardo, foi imediatamente aceite como um verdadeiro mestre, à semelhança de Machado de Assis. Jorge Amado não hesita em dizer que Vidas Secas é obra-prima de Graciliano Ramos, continua a ser o seu livro mais divulgado pelo mundo. O mestre de Gabriela Cravo e Canela chama a atenção para as singularidades de Vidas Secas: é formado por um conjunto de narrativas que, tomadas isoladamente com contos também da melhor qualidade; assumido escritor neorrealista nordestino, é de uma magistral correção brasileira da língua portuguesa, deste sertanejo de Palmeira dos Índios nasceu clássico; não é um livro da seca temível, ruinosa, a vaga de fundo do tumulto demográfico, é a mostra nua e crua de um feudalismo indutor da escravidão e da plena submissão à autoridade, o que durante o romance é patente na figura do patrão e do militar dito amarelo; e, acima de tudo, é um exemplo modelar da técnica da escrita tão enxuta e incisiva como o mundo da seca em que se movem Fabiano, sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo e a cachorra Baleia.

Esta gente pobre vai cirandando para fugir à seca, vemo-los no ponto de partida caminhando o dia inteiro, arrastando-se e famintos. A linguagem é castiça, o leitor não perde nada em ter um dicionário luso-brasileiro ao pé para conhecer os juàzeiros, a caatinga, touceiras de mancambira. Parece uma marcha errante, uma fuga de um pesadelo, a procura de um oásis. A simplicidade da escrita diz tudo: “Miudinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos agarraram-se, somaram as suas desgraças e os seus pavores. O coração de Fabiano bateu junto do coração de sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que os cobriam. Que resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.” A cachorra Baleia apanha um roedor que lhes irá matar a fome. E não falta a ternura no meio daquele deserto onde escasseia a água:

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas, esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de papo para cima, olhando as estrelas, que vinham nascendo. Uma, duas, três, quatro, havia muitas estrelas, havia mais de cinco estrelas no céu. O poente cobria-se de cirros – de uma alegria doida enchia o coração de Fabiano.”

Recomeça a vida, Fabiano trabalha numa fazenda, há sementeiras, há animais, a vida é duríssima, os meninos brincam na lama, a luz que os alumía é de querosene. Dentro desta organização romanesca com aparato genial de trechos soltos, iremos acompanhando a saga desta gente pobre que conhecerá ditas e desditas, Fabiano a ser enganado no jogo na bodega de seu Inácio, preso e levado para a prisão, e espancado, apavorado sabendo que sinhá Vitória vivia em desassossego. Sinhá Vitória e os seus sonhos, gostaria de dormir numa cama de lastro de couro, está na cozinha e vê os meninos entretidos no barreiro, sujos de lama, fabricando bois de barro. É uma mulher expedita, guarda os seus sonhos, isto enquanto trata das lidas da casa, sente-se confiante nestas lidas de mulher de vaqueiro, sinhá Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira.

Todos os personagens têm direito a entrar em cena, mudou-se da seca para trabalho seguro (se bem que dentro da mais ignóbil exploração), dentro desta pouquíssima oralidade que não dá direito à expressão aberta dos sentimentos, os meninos e a cachorra têm o seu mundo, como se todos formassem um pentágono, o menino mais novo, brincalhão e inocente, segue as façanhas do pai, vestido como um vaqueiro, nada lhe escapa na curiosidade. O menino mais velho faz perguntas inapropriadas, quer saber o que significa inferno, ouviu a palavra a sinhá Terta, foi repreendido, ora todos os lugares conhecidos eram bons, andava em mundos onde se vivia em paz, embora houvesse situações ruins e o menino não acreditava que um nome tão bonito como inferno servisse para designar coisa ruim. Despeitado pela falta de explicação, entreteve-se com a cachorrinha.

E houve um inverno de águas abundantes, tudo cresceu enquanto o rio subia a ladeira, sente-se a segurança da fartura possível à vista. É nisto que Graciliano Ramos gera um texto sublime, a família vai à festa, procuram ir vestidos a preceito, assim:

Fabiano, apertado na roupa de brim branco feito por sinhá Terta, com chapéu de baeta, colarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, procurava erguer o espinhaço, o que ordinariamente não fazia. Sinhá Vitória, enfronhada no vestido vermelho de ramagens, equilibrava-se mal nos sapatos de salto enorme. Teimava em calçar-se como as moças da rua – e dava topadas no caminho. Os meninos estreavam calça e paletó. Em casa sempre usavam camisinhas de riscado ou andavam nus. Mas Fabiano tinha comprado dez varas de pano branco na loja e incumbira sinhá Terta de arranjar farpela para ele e para os filhos. Sinhá Terta achara pouca a fazenda, e Fabiano se mostrara desentendido, certo de que a velha pretendia cortar-lhe os retalhos. Em consequência as roupas tinham saído curtas, estreitas e cheias de emendas.”

São descrições brilhantes, da igreja para a festa, a bebedeira de Fabiano que até anda à procura de uma rixa, sinhá Vitória e os meninos andam para ali deslumbrados a ver as lojas e as toldas. Fabiano teve que tirar uma sesta, roncava de papo para cima, com sonhos maus. E segue-se a comovente descrição da morte da cachorra Baleia, todos nós sabemos que há textos admiráveis para animais, este é comovente do princípio ao fim. E daqui partimos para a prepotência paternal, um patrão que engana, que se aproveita da ignorância do trabalhador, faz as contas aldrabando, contas que em nada coincidem com as que faz de sinhá Vitória, apetece-lhe refilar, pedir justiça, patrão ameaça com desemprego, Fabiano humilha-se. Como, adiante, perante um militar acobardado que andava para ali perdido (Governo é governo) tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo.

E temos o prenuncio de novo descalabro, a seca volta a dar sinais de vida, a partida é outro texto admirável, o casal e os meninos partem para novo sonho, cultivar um pedaço de terra, mudarem-se depois para uma cidade, os meninos frequentariam escolas. Porque o sertão, como manda o destino, entrega a cidade a homens fortes, brutos, como Fabiano, sinhá Vitória e os dois meninos.

Obra-prima absoluta, não houve prémio Nobel para Graciliano, tem o destino marcado para a eternidade.

Mário Beja Santos

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