Sexta-feira, Outubro 11, 2024
InícioLeiturasLeituras inextinguíveis (135): A nobre alegria de ter uma religião e a...
banner-complexo-aquático

Leituras inextinguíveis (135): A nobre alegria de ter uma religião e a nobre tristeza de a ter perdido

Retirei o título deste texto de uma citação de Fernando Pessoa no contexto da crítica que Robert Bréchon fez a este livro de Vergílio Ferreira, editado em 1953, cujo tema central, sem equívocos, é a experiência do escritor no seminário onde andou na sua adolescência. É um fresco poderoso, num processo literário atormentado, taciturno, onde não se esconde uma mágoa infinita, de um mundo beirão aí para a década de 1930, num meio familiar de gente paupérrima, onde uma mãe viúva e com vasta prole sonha que o filho venha a ser padre e que a todos restitua um pouco a dignidade. O jovem, António dos Santos Lopes, graças à interceção de D. Estefânia, mulher de capitão de tarimba, vai dar entrada no seminário, parte de comboio. E sente-se desde a primeira página a perfeita ligação do escritor com o meio que o viu nascer, a névoa da madrugada que se desprendia dos campos, a viagem em 3ª classe e descobrir que há outros meninos vestidos de fato preto, os magalas a mordê-los com o epíteto de padrecas, os seminaristas entabulam conversa, António fica a saber que vai aprender latim, e assim chegam ao seu destino:

“Pela tarde, ao escurecer, chegámos finalmente â estação da Torre Branca. Uma torrente negra de seminaristas inundou tudo. Dois carros de bois carregavam as sacas, sob as ordens chicoteadas do padre Tomás, e a um bater de palmas arrastámo-nos em massa estrada fora. Atravessámos, soturnos, as ruas escusas da vila, como fugidos a um qualquer crime obscuro, murmurando, furtivamente, uma conversa rezada, olhando de lado, com hostilidade, um mundo que não era nosso.”

Vergílio Ferreira

E entramos na atmosfera do seminário e nos seus regulamentos, um mundo de jovens divididos em divisões, amplas camaratas, a sincronização das rezas, as normas de pudor como enfiar as calças dentro da cama, as meditações, António olha à sua volta e confere que todos aqueles jovens, na sua maioria, vinham da raça da gleba. “Empenados, talhados à podoa, recosidos das soalheiras através das gerações, trazíamos na face negra a nossa condenação. Havia-os baixos, cheirando à terra, com dois pulsos grossos como dois eixos de carro. Havia-os altos, ossudos, com o peito largo encovado. Uns tinham a bola grande do crânio integralmente rapada. Outros, com duras repas de cabelos a enchumaçar-lhes o pescoço, abriam o seu pasmo cavernoso e lento de bichos. De olhar assustado e ferino, de olhar morto de boi, infelizes e inocentes, eu olhava-os como irmãos do fundo do meu sofrer.” António é uma criança cheia de saudades, no escuro da camarata pega num pequeno saco de figos que a mãe lhe dera à despedida, aqueles figos trouxeram-lhe a presença de um carinho morto.

As cartas enviadas à família são previamente lidas, se a criança diz que não quer estar no seminário, inicia-se uma sessão que apazigua a alma juvenil, é uma consolação temporária para que se decida bem, porque “muitos são os chamados, poucos os escolhidos”. A disciplina é férrea, os jogos sobre os conhecimentos adquiridos são pura competição, proibidas as conversas prolongadas a dois, castigos de palmatória, fazer a penitência de joelhos. Todos organizados como o exército, brigadeiros até praças, os grupos desafiam-se, saboreiam-se os triunfos e as derrotas.

Vêm as férias, repetem-se as troças e as mofas no comboio, passa o seminarista vestido de preto e alguém imita o grito dos corvos. A caminho de casa, António almoça com o Gama na Guarda, este diz-lhe que não tem vocação para padre, irá informar a família. Nas férias, António está subordinado a viver com D. Estefânia e os seus filhos, acompanha-a no início do dia para ir à igreja. António tem as visitas condicionadas à família, mesmo os seus antigos companheiros recebem-no com troça e palavrões. Antes de regressar ao seminário, D. Estefânia convoca António e quer saber porque é que ele anda triste, ele confessa que não tem vocação, ela responde-lhe, escarninha: “Não tem vocação! Tem mais vocação para se encher de côdeas e de piolhos. O lorde. Não tem vocação para padre. Prefere ser doutor. A mãe vai pô-lo em Coimbra a estudar. Eh! Se não tem vocação, rua! Vá comer palha! Aqui nem mais uma hora! Rua!” Mais tarde, esta beata fanática reconsidera, vem suave, António diz que tem vocação, os ânimos apaziguam-se.

Regressa ao seminário, afinal o Gama voltou, irá fazer desacatos de toda a ordem, virá a ser expulso, António descobre que há lugares vazios, todos aqueles padres se lhe revelam detestáveis, a exceção é o padre Alves, considera-o um bom homem. “Era alto, pesadamente vergado, lento e poderoso no caminhar. Manso como uma força consciente, toleravam-nos a infância e ria aí connosco, desarmado, com uma inocência primitiva. A imagem do bom varão enternece-me como a memória infeliz de um pai que me morrera.” O diretor espiritual fala-lhe dos pecados da carne, como deve repudiar a tentação do vício solitário: “Rezar para afastar os maus pensamentos. Nada de mãos nos bolsos. Nada de encostos. Procurar posições incómodas, quando preciso. Mãos fora cama, sempre que possível. De qualquer modo, nunca as encostar ao corpo. Não dormir de roupa chegada. Usar ceroulas folgadas.” António faz grande amizade com Gaudêncio. À sorrelfa, um seminarista quer mostrar-lhe livros e revistas com mulheres nuas, aparece um padre, arrebata-lhe as revistas, o seminarista é expulso, António é humilhado, retiram-lhe a fita verde de bom comportamento.

Regresso a férias, sempre em casa de D. Estefânia, aparece o filho mais velho, que estuda em Coimbra, chama-se Alberto, terá as suas relações secretas com uma das criadas. Grassará uma epidemia, longas e pesadas baixas à enfermaria, morrerá o maior amigo de António, aquele que um dia lhe perguntou se ele já tinha pensado “e se Deus não existisse?” Já passaram dois anos, António está firmemente decidido a sair do seminário, faz a revelação à mãe, ela não esconde a sua ira, esperava ter um filho padre que lhe desse sossego na velhice. E num arraial que mete pirotecnia, ao pegar numa bomba, ela explode na mão de António que perde dois dedos da sua mão direita. Adeus, seminário, ele vem para Lisboa, trabalhou como moço de recados, é agora funcionário de escritório, está ciente de que descobriu o amor, mas sente ainda um desespero triste. E o romance finda assim: “Por isso, nesta hora nua em que escrevo, perdido no rumor distante da cidade, conforta-me pensar não sei em que apelo invencível da vida e de harmonia não morreu desde as raízes da noite que me cobriu.”

Jamais se voltou a escrever sobre a vida dos seminários como em Manhã Submersa, foi para mim verdadeiramente uma leitura inextinguível.

Mário Beja Santos

Receba a newsletter com as notícias do Ribatejo

Não enviamos spam! Leia a nossa política de privacidade para mais informações.

Deixe o seu comentário

por favor, escreva o seu comentário
Por favor, escreva aqui o seu nome

Este site utiliza o Akismet para reduzir spam. Fica a saber como são processados os dados dos comentários.

Também pode ler

Subscreva a newsletter

Receba as notícias do dia do jornal Mais Ribatejo diretamente na sua caixa de email.

Artigos recentes

Comentários recentes

pub
banner-aguas-ribatejo
banner-união-freguesias-cidade-santarem

popup uls estuário do tejo recrutamento de enfermeiros