Sábado, Outubro 12, 2024
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Hungria: A Utopia de Ventura (o que seria a sua”4ª República”?) por Rui Martins

Apesar do recuo da votação no Chega nas últimas eleições europeias, da manifesta falta de quadros (que, aliás, esteve na base desses maus resultados), a verdade é que o Chega continua no centro do debate político e mediático, muito por culpa dos inegáveis méritos histriônicos do seu líder, da inércia e conservadorismo dos partidos centrais ao sistema (PS e PSD) e da existência de uma forte base eleitoral nas muitas centenas de milhar de “desiludidos do sistema” que constituem e constituirão sempre a piscina eleitoral de trumpismos, populistas de esquerda ou direita ou de candidatos a autocratas. Em suma: podemos colocar no domínio das hipóteses plausíveis a que coloca um dia – num futuro mais ou menos breve – o Chega a ganhar eleições legislativas e a governar, sozinho, ou em aliança directa ou cúmplice com partidos de centro direita. Certos sectores do PSD já o admitem e, em troca de poder ou de benesses financeiras, será de esperar que esses sectores se sobreponham aos moderados e com maior puder numa coligação assumida ou implícita com um partido populista de direita como o Chega.

Se o Chega chegar um dia ao Governo da República o que podemos esperar? Em primeiro lugar: não nos devemos focar no programa ou programas eleitorais deste partido para saber o tipo de governação chegana: os programas que o partido apresenta às eleições são inconsequentes, frequentemente contraditórios entre si, elaborados ao sabor da moda e dos impulsos do momento. Não têm qualidade técnica, estimativas de impacto financeiro nem são – realmente – escritos para serem lidos e, muito menos, executados. Todos os partidos, de facto, fazem um pouco do mesmo: mas quando são confrontados com as exigências da governação apressam-se a ler o que foi escrito nos programas e a elaborar “agendas” para os diversos sectores que, depois, tentam materializar em acções legislativas ou executivas concretas: esse fenómeno está a acontecer precisamente agora com o governo da AD. O Chega, como não tem um verdadeiro programa, foca as suas campanhas na repetição até à exaustão do tema da “corrupção”, associando os seus adversários políticos a essa actividade, usando impunemente, rostos, mensagens gráficas de extrema agressividade mas nenhum conteúdo. Mas se o Chega não tem um verdadeiro programa ou visão para o país transposto num programa de governo: como poderemos saber o que será um governo do Chega quando este partido, eventualmente, um dia tomar o poder? Bem, podemos começar por ver a situação de um país liderado por alguém que André Ventura já elogiou e que, inclusivamente, enviou mensagens vídeo a apoiar a campanha eleitoral do Chega: a Hungria de Viktor Órban. Se queremos saber como seria um Portugal governado por Ventura: há que saber como é a Hungria de Órban.

1. Desmantelar a Democracia:

Quando Viktor Órban tomou o poder na Hungria, em 2010, começou o processo a que o líder húngaro chama de construção de um “Estado iliberal”. Orbán instalou na Hungria aquilo a que chama de “iliberalismo”: nesta mundivisão todos pensam da mesma maneira, todos falam da mesma maneira e todos obedecem à ordem vigente.
Não sendo tecnicamente uma ditadura, o tipo de regime que hoje em dia governa a Hungria é pelo menos uma “democracia mitigada” onde a saudável alternância democrática é muito difícil.
Seria esta “IV República” de André Ventura e do Chega: uma IV República Iliberal ao modelo Orbán.

2. Afastamento das Instituições internacionais: OTAN e UE:

Praticamente desde 2010 que a Hungria se começou a afastar da aliança militar ocidental e das instituições europeias. A tomada do poder pelo partido de André Ventura conduziria – quase de imediato – à replicação destes processos centrífugos. O europeísmo do PPD/PSD (que neste cenário inicial teria que ser um aliado chegano) poderia travar o movimento de afastamento e repulsa para com a União Europeia e a OTAN, pelo que este eixo deste cenário de uma futura governação chegana poderia ser mitigada. Mas logo que esta aliança deixasse de ser necessária, o afastamento da OTAN seria consumado e até poderia colher o apoio de partidos à esquerda como o Bloco de Esquerda e o PCP numa deriva fria e calculista que estes partidos poderiam trilhar de forma a conseguirem – neste eixo provisório de populistas esquerda-direita – alcançarem o seu objectivo. Tal afastamento não teria que ser formal mas meramente discursivo ou operativo e teria como maior motivação o fluxo de verbas e apoios internacionais aos orçamentos e programas deste governo chegando por parte dos regimes autocráticos da China ou da Rússia.

3. Apoios:

O partido Fidesz, abreviação de “Fiatal Demokraták Szövetsége” (“Aliança dos Jovens Democratas”) começou a ser desviado por Orbán para a direita nos finais da década de 1990 através do apoio de políticos anti-comunistas e ligados à Igreja Católica. Ou seja, teria sido impossível a Orbán assumir o poder se não assumisse também o tipo de discurso pró-igreja e se caminhasse na mesma via das correntes ultra-católicas húngaras. E assim fica explicado a tentativa de colagem de André Ventura à Igreja, as várias fotografias em posição de joelhos rezando em estabelecimentos religiosos e o discurso anti-aborto e LGBTI do ĺíder do Chega.

4. Semelhanças de discurso:

André Ventura é um político hábil e um bom orador mas não é genial ao ponto de inventar de raiz a cartilha que segue. As suas inspirações nos populistas europeus, desde Salvini a Le Pen e em, sobretudo, Trump, são notórias e inquestionáveis. Uma destas semelhanças foi o foco em 2006 na caracterização por parte de Orbán do governo húngaro de então, de centro-esquerda, como “adversário da Nação”. Na altura o Fidesz levou a agitação para as ruas, polarizando a sociedade e conseguindo votos através da mais básica demonização dos seus adversários.
O mesmo tenta agora fazer o partido de André Ventura com cartazes que associam antigos ministros do PS à corrupção, que tenta – repetidamente – colocar o PSD/CDS no mesmo barco e que desumaniza os adversários associados a desvios de ética e à lei quando despreza a existência de casos semelhantes nas suas próprias fileiras.

5. O risco da maioria:

É preciso sublinhar que, em 2010, o Fidesz obteve 53% dos sufrágios e que foi essa percentagem que lhe permitiu começar a minar o sistema democrático por dentro e a alterar a constituição criando condições para a eternização no poder.
Em Portugal, as alterações à lei eleitoral exigem uma maioria qualificada de dois terços (2/3) dos deputados em efectividade de funções na Assembleia da República. A regra está estabelecida na Constituição da República Portuguesa no artigo 168º, nº 6, alínea b) que determina que as leis sobre o sistema eleitoral e referendo requerem aprovação por maioria de dois terços dos deputados presentes, desde que superior à maioria absoluta dos deputados em efectividade de funções.
Na prática, isso significa que são necessários pelo menos 154 votos favoráveis dos 230 deputados da Assembleia da República para aprovar alterações à lei eleitoral.
Esta exigência de maioria qualificada torna as alterações à lei eleitoral mais difíceis de serem aprovadas, requerendo um consenso significativo entre os diferentes partidos políticos e torna a tomada permanente do poder por parte de um partido populista mais difícil, mas não impossível se o Chega obtivesse mais de 66% de todos os votos (na Hungria bastaram 53%).

6. Os golpes eleitorais:

A mudança da lei eleitoral húngara levou à manipulação massiva dos círculos eleitorais (“gerrymandering”) e concedendo ao partido vencedor de cada eleição um “prémio” em assentos parlamentares. O sistema eleitoral húngaro ficou – consequentemente – totalmente distorcido a favor do partido de Orbán, fazendo com que, em 2014, 45% dos votos implicassem 67% dos lugares no parlamento.
Em Portugal seria preciso que o Chega tivesse uma maioria qualificada de dois terços (2/3) dos deputados em efectividade de funções na Assembleia da República (66,67%). Esta exigência de maioria qualificada está estabelecida na Constituição da República Portuguesa, no artigo 168º, nº 6, alínea b) e implicaria um grande crescimento da votação no Chega que reuniu apenas 18.07% dos votos em março de 2024. Será um crescimento improvável no curto prazo mas não impossível como demonstram as sondagens em França: Rassemblement National (RN), de extrema-direita, e os seus aliados, a fação do partido Os Republicanos afeta a Éric Ciotti (LR-Ciotti), com 35,5% das intenções de voto.

7. A Conquista do Estado:

Logo que Orbán tomou o poder, o líder do Fidesz começou a colocar amigos próximos em vários lugares no Estado desde o Tribunal Constitucional (como fez Trump nos EUA), vários organismos de supervisão, Justiça e Ministério Público. Desta forma destruiu o sistema húngaro de “checks and balances” e construiu uma democracia aparente que tem práticas totalitárias e tornou a Hungria num país de “partido quase-único”.
Paralelamente o regime de Orbán retirou competências ao seu tribunal constitucional p.ex. em matérias orçamentais e outros dispositivos que quebraram o princípio da separação de poderes e a livre competição entre partidos políticos.

8. Controlo dos Media

Um traço comum a todas as autocracias que, hoje em dia, vestem a capa da “democracia” desde Venezuela, passando pela Rússia e pelo Irão, é o controlo absoluto dos meios de comunicação. Logo que tomou o poder Orbán começou a colocar pessoas-chave nas administrações dos órgãos de comunicação controlados pelo Estado. Em 2018 criou um grande conglomerado de media favoráveis ao Fidesz criando um gigantesco holding e protegendo essa violação flagrante das leis da concorrência com a marca da “importância estratégica”.

9. O ódio ao “Outro”

Qualquer regime populista de direita se afirma e preserva no poder à custa do ódio do “outro”: A Hungria de Orbán não é excepção e todas as vitórias eleitorais do Fidesz seguiram esse padrão: Como com Orbán, Ventura vive de criar a divisão entre o eleitorado, seguindo a bitola originalmente forjada por Alberto João Jardim na Madeira através de declarações bombásticas que logram elevado eco mediático. É nesse sentido que no discurso oficial e implícito do Fidesz a imigração (Em 2024 menos de 5% da população na Hungria) e de Ventura se alinham e ecoam emulando aliás, também, o seu “role model” americano: Trump. O imigrante serve assim de catalisador ao ódio do “outro” e alimentado por um receio atávico pela diferença pelo “muçulmano”, “industânico” ou simplesmente pelo estrangeiro que nos vem roubar empregos ou descer a média salarial é, aliás, o principal alimento do crescimento eleitoral do populismo para dentro dos partidos de moderados e de centro, algo a que eles, ainda não deram a devida atenção e resposta.

10. O ultracristianismo

Como parte da afirmação do “nós” contra os “outros” Viktor Orbán desenvolveu um discurso político em torno de uma alegada “guerra cultural” entre uma cultura cristã conservadora e o resto do mundo. Desta forma conseguiu mobilizar em torno de si vários grupos ultraconservadores cristãos e reforçar o poder do seu partido sobre a sociedade húngara. André Ventura compreendeu que a potencialidade eleitoral de um alinhamento discursivo com a Igreja Católica e, após ter colocado o Chega no Parlamento fez questão de exibir a sua religiosidade militante, as suas aparições em missas e celebrações religiosas. Emulando o seu ídolo, André Ventura visa captar o mesmo tipo de eleitorado: cristão e conservador. Não há em Portugal o mesmo tipo de conservadores católicos extremistas que Orbán captou na Hungria, mas há um capital eleitoral a conquistar e conservar que o líder chegano visa conquistar.

11. A mobilização dos Ultras

Na Hungria, Orbán agregou em torno do seu partido uma série de pequenos grupos de extrema direita e quando conquistou o poder encetou uma campanha como aquelas em que Trump se tornou exímio: através da humilhação sistemática dos seus adversários nos partidos e na sociedade civil. Ventura, especialmente no Parlamento, usa o mesmo tipo de técnica oratória.

12. O chalupismo

Para manter e fazer crescer a sua base de apoio no voto popular, Orbán focou-se nos segmentos menos informados e com menores níveis académicos aderindo a um conjunto de mitos, teorias da conspiração e falsas notícias. Em Portugal, Ventura segue na mesma linha propagando as teorias de substituição demográfica, o discurso antivacinas, a negação climática, tudo confere com as bitolas determinadas por Orbán na Hungria.

Se resumimos os diversos vectores em que se exerce a política de Viktor Orbán na Hungria encontramos:
Nacionalismo: Foco na identidade nacional húngara e na soberania.
Euroceptismo: Crítica constante às políticas da União Europeia, defendendo maior autonomia para os estados-membros.
Antiimigração: Posição dura contra a imigração, especialmente de países não-europeus ou não-cristãos e islâmicos.
Conservadorismo social: Defesa de valores familiares tradicionais e oposição a políticas LGBT+.
Centralização do poder: Aumento do controlo estatal sobre instituições como os Media, o sector judicial e a educação.
Economia: Mistura de políticas de livre mercado com defesa da intervenção estatal em sectores estratégicos.
Política externa: Aproximação com Rússia e China, às vezes em tensão com aliados ocidentais.
Cristianismo: Ênfase na herança cristã da Hungria e da Europa.
Crítica ao liberalismo: Oposição ao que chamam de “liberalismo ocidental” e “globalismo”.
Política demográfica: Incentivos para aumentar a taxa de natalidade húngara.

Todos estes vectores podem ser encontrados no discurso de André Ventura e dos seus seguidores com a notável excepção da Ucrânia (por forma a ajustarem o discurso populista ao sentido dominante pró-ucraniano em Portugal).

Existem várias estratégias que podem ajudar a prevenir que partidos populistas como o Chega ou o Fidesz na Hungria cheguem ao poder, embora seja um desafio complexo:
1. É preciso reforçar nas escolas e nos meios de comunicação social a educação cívica e política para fortalecer o entendimento da população sobre a natureza e exercício da Democracia e os riscos do populismo.
2. Combate à desinformação e notícias falsas através de fact-checking e promoção do pensamento crítico sistemático.
3. É urgente realizar uma abordagem às causas do descontentamento popular, como as falhas na Justiça, no Ministério Público, na Academia, na desigualdade económica e no combate efectivo e não apenas percepcionado à corrupção.
4. É necessário fortalecer instituições democráticas e o estado de direito atraindo para a política os melhores e não permitindo que se torne o palco de umas quantas famílias que – monarquicamente – se perpetuam no poder.
5. É crítico incentivar o diálogo entre diferentes grupos sociais para reduzir a polarização e sobretudo a hostilização à imigração.
6. Criar formas imparciais mas justas e apoiar os meios de comunicação independentes do poder político e económico.
7. É preciso aumentar a transparência em todas as formas de exercício do poder e na administração e execução dos orçamentos nacionais e autárquicos aumentando a quantidade, qualidade e fiabilidade dos dados dos contratos públicos carregados no Portal Base.gov

É importante ressaltar que estas medidas devem ser implementadas de forma democrática e respeitando o direito de escolha dos eleitores. O objectivo é criar um ambiente político mais saudável, não impedir arbitrariamente a participação de certos partidos.

A comparação entre o Chega e o Fidesz revela um conjunto de semelhanças e diferenças que oferecem uma visão clara sobre o potencial impacto de uma eventual ascensão ao poder do partido liderado por André Ventura em Portugal. Ambos os partidos demonstram uma estratégia centrada na crítica à corrupção, desilusão com o sistema político estabelecido, e apelos populistas que exploram temores e insatisfações da população.

No caso do Fidesz, liderado por Viktor Órban, a trajectória de governo iliberal começou com um desmantelamento gradual da democracia, afastamento das instituições internacionais como a UE e a OTAN, e um forte apoio de grupos ultraconservadores, especialmente ligados à Igreja Católica. Órban utilizou a manipulação das leis eleitorais para garantir uma vantagem desproporcional e enfraqueceu as instituições de controle do poder, como o sistema de Justiça e os Media. Além disso, o governo de Órban é caracterizado por um discurso nacionalista, anti-imigração, eurocéptico e de conservadorismo social.

Por outro lado, o Chega, apesar de não ter um programa de governo claramente delineado e com qualidade técnica, apresenta tendências semelhantes nas suas campanhas e discursos. Ventura emula a retórica de líderes populistas como Trump e Órban, focando-se em criar divisões na sociedade e capitalizando sobre o descontentamento popular. As tácticas de Ventura incluem a mobilização de um discurso religioso conservador, a crítica constante aos adversários políticos através de acusações de corrupção e a manipulação das emoções populares contra minorias e imigrantes.

Contudo, existem barreiras constitucionais significativas em Portugal que tornam mais difícil a perpetuação no poder através de alterações legais como as que ocorreram na Hungria. A necessidade de uma maioria qualificada para mudanças na lei eleitoral é um exemplo de protecção contra a erosão democrática. Ainda assim, o crescimento do Chega e o seu potencial para formar alianças com partidos de centro-direita indicam que a influência deste partido pode aumentar substancialmente e ameaçar as bases do regime democrático em Portugal.

Em conclusão, enquanto o Fidesz de Órban na Hungria serve como um modelo de como um governo populista pode desmantelar as estruturas democráticas e reforçar um regime autoritário, o Chega de Ventura mostra sinais de seguir um caminho similar. A diferença crítica reside nas protecções institucionais e na capacidade dos partidos e da sociedade portuguesa de resistir a estas tendências. Prevenir a ascensão de um governo populista extremo como o do Fidesz e Orbán requer uma combinação de educação cívica, fortalecimento das instituições democráticas, combate à desinformação, e promoção de um diálogo inclusivo e transparente em toda a sociedade e é uma tarefa prioritária para os próximos anos.

Rui Martins

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