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Leituras inextinguíveis (136): A arte de saber ensinar a conhecer a História de um esplendoroso monumento nacional e de entender as operações do seu restauro

A Charola do Convento de Cristo, História e Restauro, com coordenação científica de Ana Carvalho Dias e Irene Frazão, Direção-Geral do Património Cultural, 2014, é um notável compêndio onde um conjunto de especialistas, numa linguagem necessariamente exigente, mas altamente compreensível para o leigo, desvelam como nasceu a inconfundível rotunda do Convento de Cristo, na sua etapa românica, como se engalanou no reinado de D. Manuel I, seguindo-se uma exposição interessantíssima da natureza dos trabalhos de estudo, conservação e restauro realizados na Charola durante cerca de 25 anos. Não há leitor que não fique estupefacto com esta edição cuidada e didático-pedagógica irrepreensível.

Charola do Convento de Cristo, Tomar, óleo de Alfredo Keil, 1903, Museu Nacional de Arte Contemporânea
Charola do Convento de Cristo, Tomar, óleo de Alfredo Keil, 1903, Museu Nacional de Arte Contemporânea

Luís Urbano Afonso encarrega-se das etapas românica e manuelina, expõe a singularidade da Rotunda, que não tem paralelo na arquitetura portuguesa do período românico. Igreja templária colocada sob a invocação de S. Tomás de Santuária, templo centralizado e compacto, com as suas janelas abertas a grande distância do solo, verdadeira igreja-torre, seguramente uma componente importante do sistema defensivo levantado pelos Templários a partir de 1160, na colina de Tomar. Viajamos pela arquitetura templária em Portugal, a inserção da Rotunda no sistema defensivo do castelo, como era ocupado todo este espaço civil e militar, as ligações da Charola ao românico da cidade de Coimbra, como os guerreiros monges visualizaram implantarem Tomar algo existem em Jerusalém, isto é, introduzindo uma simbologia no Ocidente do local onde Cristo foi crucificado, sepultado e teria ressuscitado. Na sequência desta exposição, o mesmo investigador alarga-se no tocante à campanha de obras decretada nos inícios do século XVI por D. Manuel I, campanha que definiu o aspeto atual da igreja. Como o autor escreve, esta mudança consistiu na construção de um enorme volume longitudinal, ligado à edificação antiga. O corpo manuelino corresponde a uma nave de planta retangular dotada de uma sacristia semienterrada, posteriormente adaptada a Sala do Capítulo, sobre a qual se ergue um coro-alto. O que significa que a antiga Rotunda passou a ser a cabeceira de uma nova igreja. Havendo que entender a sequência dos factos históricos, o autor refere a extinção da Ordem do Tempo e a criação da Ordem de Cristo e toda a retórica e encenação que o monarca pretendeu imprimir no embelezamento da Rotunda e no novo edifício, com realce para a inconfundível Janela do Capítulo.

O monarca não se escusou a esforços para trazer escultores, pintores e artesãos de altíssima qualidade, sobretudo flamengos e portugueses, Luís Urbano Afonso passa em revista toda essa operação ornamental que provoca a todo e qualquer visitante uma enorme comoção estética. Diz ele que o primeiro impacto é de surpresa e estranheza. Cá fora temos a rudeza e simplicidade do volume românico, com os seus muros de pedra tosca e a sua monocromia pardacenta. Lá dentro, um ambiente luxuoso, festivo, onde todas as superfícies pétreas estão policromadas, douradas ou tapadas com diferentes tipos de obras de arte. Neste interior temos a impressão de viver um sonho, o ambiente parece tudo menos real. Na época manuelina a Charola constituía-se como a expressão máxima da exuberância e riqueza de uma ordem militar que até aí tinha estado empenhada, e tinha beneficiado, com a expansão ultramarina. A igreja foi transformada num autêntico Templo de Jerusalém, mais para a glória do rei, qual o novo Salomão, do que para a glória de Cristo. Mas há a destacar um outro aspeto, retoma-se a narrativa do autor. A Charola era também uma viagem mental, rememorativa, para os poucos que já tinham estado na Terra Santa. A diversidade de cenas da vida de Cristo representadas nas paredes, na pintura mural e na pintura de cavalete, reporta-se a locais concretos da Terra Santa, sobretudo Jerusalém.

Outro estudioso, Jorge Custódio, embrenha o leitor na análise histórica das vicissitudes dos restauros, irá escalpelizar metamorfoses logo com a reforma do Infante D. Henrique, depois com as intervenções dirigidas com D. Manuel I e designadamente com as intervenções ocorridas no reinado de D. João V e posteriores. O tempo não passou à margem na vida da Charola, por exemplo o terramoto de 1755 afetou-a, a abóbada abriu frestas e a torre sineira ruiu parcialmente. O autor analisa a complexidade de todo o ambiente decorativo da Charola, que implica um conhecimento aprofundado das realidades arquitetónicas e das diversas expressões artísticas conjugadas com as suas implicações religiosas. É este mesmo autor que irá analisar um período de restauros que abarca a passagem do empirismo à ciência (1843-1932), são apreciados os tipos de restauro e natureza das respetivas intervenções, dizendo mesmo que a notável obra da equipa de Adães Bermudes impediu o desaparecimento da Charola de Tomar da face da Terra. A equipa que dirigiu ou o ensinou conseguiu perpetuar a joia do património arquitetónico e artístico português, tornando possível observar hoje o tesouro inserido na edícula templária ao lado do programa decorativo manuelino e pós-manuelino.

Não foi ao acaso que emiti o parecer de que este livro não é só precioso pelo rigor histórico, ajuda o leitor a interessar-se e emergir nas diferentes expressões do restauro. Nas superfícies arquitetónicas, na conservação de pinturas murais, no restauro sob tábua, os estuques, os vitrais, as esculturas em madeira, a conservação e restauro do deambulatório e do Arco Triunfal. Diferentes autores fazem a apreciação das problemáticas e metodologias do restauro, a intervenção sobre a pintura mural, os estuques, a conservação e restauro das pinturas monumentais, explica-se a arte do guadamecil (os guadamecis são cabedais decorativos e artísticos muito apreciados por toda a Europa, em particular entre os séculos XVI e XVIII, terá tido o seu desenvolvimento na arte muçulmana e estendeu-se um pouco por toda a Europa), a talha dourada, os vitrais e dá-se uma explicação cuidadosa do tratamento de conservação e restauro das estruturas do tambor central da Charola.

Não são poucos os livros de grandes mestres que nos ensinam a apreciar o significado da arte. Mas tenho presente que esta edição sobre a História e Restauro da Charola do Convento de Cristo é paradigmática de como se ensina a ver um monumento através dos ciclos históricos, das idiossincrasias de toda a espécie e como a ciência do restauro garante a perenidade possível de um monumento que é, indiscutivelmente, património de toda a humanidade. Se me pedissem uma referência de obra para ensinar a cultivar o belo, e as artes da sua conservação e restauro, não hesitaria em indicar este livro.

Mário Beja Santos

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