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Spínola, um general perdido no seu labirinto

“A publicação deste livro resultou da iniciativa de um grupo de amigos do falecido Carlos Santos Pereira que decidiu publicar a sua tese de mestrado em História Contemporânea, efetuada na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa (abril de 2001). O documento versa sobre a atuação do então brigadeiro António de Spínola na Guiné, como Comandante-chefe, até à publicação de Portugal e o Futuro (fevereiro de 1974).

Escritor e jornalista Carlos Santos Pereira (1950-2021)
Escritor e jornalista Carlos Santos Pereira (1950-2021)

O General Spínola e a Guiné Contra os Ventos da História, por Carlos Santos Pereira, edições Colibri, 2024. O mestrando foca-se na vertente do chefe militar, os aspetos inovadores que imprimiu à sua atuação, a forma como rearrumou os seus efetivos, procurando agilizar o apoio logístico, abandonando locais onde não havia população civil, estabelecendo um conjunto de diretivas e forjando uma imagem de comandante atento, exigente, com uma relação de grande empatia junto das tropas. Não descurou a sua condição de Governador, procurou definir uma política que se diferenciava da oficialmente estabelecida, atreveu-se a falar em autodeterminação e explorou até à exaustão o slogan “A Guiné para os guinéus”. Carlos Santos Pereira discreteia previamente sobre o quadro político em que se inseriu a nossa guerra colonial, mas no prefácio o coronel Carlos de Matos Gomes, aproveitando o título de uma obra-prima de Gabriel García Márquez, O General no Seu Labirinto, procura dar uma interpretação de todo o itinerário de Spínola desde a imagem do grande condutor militar até ao político falhado:

“Spínola viveu e perdeu-se no seu labirinto, não conseguiu sair dele por limitações próprias, por falta de quem o ajudasse e por excesso de quem se quis aproveitar do prestígio que pudesse ter. O seu grupo de fiéis constituíra um bom Estado-maior militar, mas de fraca qualidade política, ingénuos e sem cultura histórica. Entre o 11 de março de 1975 e o 25 de novembro de 1975, após a independência de Angola (11 de novembro de 1975), desenrolou-se o último ato de uma epopeia pessoal falhada, da desmistificação de um grande homem que não chegou a sê-lo e que não alcançou o lugar na História a que se julgava predestinado. A propósito do Marquês de Pombal, alguém escreveu que o que distingue um grande homem é a sua capacidade de gerar futuro. Spínola não teve esse dom.”

Carlos Santos Pereira teve o rigor de apresentar o seu trabalho devedor em relação a uma ampla bibliografia já existente, mas igualmente privilegiou a consulta dos arquivos e os testemunhos orais. Tem sido uma regra a quem estuda a guerra da Guiné passar como gato pelas brasas sobre a condução militar que coube quer ao brigadeiro Louro de Sousa, primeiro, e a Arnaldo Schulz, depois. Refere-se por alto que a situação ia agravando, não se explicando exatamente porquê, parece que Schulz teria negligenciado o desenvolvimento socioeconómico, posicionado na quadricula e de forma derramada todos os seus efetivos que não as forças especiais, focado em bombardeamentos e não dando grande importância à africanização da guerra. Acontece que a bibliografia desta guerra, setor por setor, desmente tal comportamento. Quanto aos meios da força aérea na Guiné, Schulz lutou denodadamente por ter meios de combate para reduzir a estilhas os sistemas antiaéreos do PAIGC; as próprias resenhas de uma comissão militar independente, ao nível do chefe de Estado-maior do Exército, comprovam que se combateu com bravura contra uma guerrilha que possuía um poderoso conhecimento do terreno, armamento cada vez mais sofisticado e superior ao português. Mas o que interessa é fazer tábua rasa destes elementos e pôr a circular que a partir de maio de 1968 a Guiné passou a ter uma liderança à altura da situação, capaz de suplantar o impasse em que a guerra se encontrava. Os bombardeamentos continuaram, criaram-se as zonas de intervenção do comando chefe (ZLIFA), eram as áreas críticas onde só iam as forças especiais e se faziam bombardeamentos. A quadricula foi efetivamente remodelada. Quando se abandonou Béli, e posteriormente Madina do Boé (esta em fevereiro de 1969), não se atendeu que estava criado um espaço mais amplo no Corubal para novas ações de intimidação do PAIGC, como aconteceu, territórios até aí a viver sem perturbação, passaram a ser flagelados. Quando se abandonou a Ponta do Inglês deixou-se a região do Xime ainda mais vulnerável. Mas isso não conta nos estudos sobre a história da guerra da Guiné, nem se relevam os meios existentes e o dinheiro atribuído para a guerra da Guiné entre 1963 e 1968 e depois – é indispensável que a hagiografia não diminua o papel do homem providencial que parecia vir a reduzir a influência do PAIGC.

Entre a data de apresentação desta dissertação de mestrado e a atualidade há factos que deixaram de ser incontestáveis e um deles é a criação do PAIGC em 19 de setembro de 1956, com a presença de Amílcar Cabral. Na dissertação usa-se de muito rigor o tratamento da atividade política de Cabral e do prestígio que este vai adquirindo na cena internacional. Santos Pereira, com justeza, faz confluir os papéis de Governador e Comandante-chefe no projeto “Por uma Guiné melhor”, no fundo a tentativa de gerar um clima psicológico novo, repudiando sentimentos e complexos de culpa, usando os meios de comunicação social de forma intensiva, estabelecendo planos de aldeamentos (reordenamentos), auscultando diretamente as populações sobre a forma de Congressos do Povo, alterando mesmo o funcionamento dos serviços de informações, a organização de tabancas em autodefesa, apostando no chamado “chão manjaco” como território de eleição para uma vasta operação socioeconómica e sociopsicológica, apostou-se em contactos com populações manifestamente controladas pelo PAIGC para aliciar as forças locais deste a fazerem parte do Exército português, operação que redundou numa tragédia, matou um sonho.

Este trabalho assenta numa relação triangular de Spínola, Cabral e Marcello Caetano, o novo presidente do Concelho tem inicialmente uma excelente relação com o general Spínola, com a evolução da guerra e a necessidade de encontrar uma solução política para pôr termo ao conflito, as relações irão crispar-se até à rutura. Porque a partir de 1972, registado o desastre do “chão manjaco”, os resultados trágicos da revolução de Conacri, a crescente presença do PAIGC nas fronteiras senegalesas, bem como a gradual aceitação de Amílcar Cabral na cena internacional, acrescido dos apoios dados aos PAIGC pela URSS e os seus aliados e até países da NATO e nórdicos, Spínola tem a consciência de que é imperativo dialogar.

A dissertação acompanha todos estes factos conhecidos incluindo o que de mais momentoso ocorreu na viragem de 1973, sobretudo a chegada dos mísseis terra-ar, Spínola descobre que é inevitável, por falta de armamento, retrair os efetivos militares e civis, demite-se de Governador e Comandante-chefe, Portugal e o Futuro será o detonador que esclarece a opinião pública que em breve haverá uma substancial alteração política, embora aquela tese federativa já fosse anacrónica. E o que escreve no prefácio o coronel Carlos Matos Gomes irá acontecer, irá mesmo envolver-se com uma rede bombista. Resta uma figura controversa a quem coube um papel fulcral na história do país.

Um trabalho muito bem elaborado, inevitavelmente acusando as rugas do tempo.

Mário Beja Santos

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