Certo planeta de certo sistema solar tinha certa zona em que habitava um povo. Na verdade, parece que não era bem um povo, parece que ninguém sabia quem eram, de onde vinham, e se eram apenas um povo ou vários, traços negativos da existência.
Certo dia, um outro povo (sublinho outro, já que “não há cá misturas”), que todos sabiam bem quem eram, de onde vinham, e se eram apenas um povo ou vários, traços positivos da existência, meteu-se por lá e sacou o território a esse povo, como é costumeiro entre povos naquele planeta daquele sistema solar.
Este povo unido e harmonioso, os Guardas Prisionais, até tentaram, na sua magnanimidade, fazer com que o outro povo, os Prisioneiros, tivessem condições de vida bastante aceitáveizinhas.
É que os Guardas Prisionais, esse povo que resiste à passagem do tempo como nenhum outro povo da história e da realidade, já ali tinha estado antes dos Prisioneiros. E, se é que não é evidente, deve ser claro que os Guardas é que estabelecem a ordem.
Ora, acontece que, dentro dos Prisioneiros, havia muita gente má, daí serem Prisioneiros. Havia Prisioneiros engenhosos, maliciosos, que de vez em quando lá conseguiam limpar o sarampo a alguns Guardas Prisionais, ou talvez apenas Guardas Prisionais de nome, mas coitados, não queriam saber daquilo para nada, só que morriam.
Como a função dos Guardas Prisionais é viverem em paz e estabelecer a ordem, toca de aviar em milhares de Prisioneiros. Neste caso, a coisa já era mais suspeita. Provavelmente estes Prisioneiros eram mesmo Prisioneiros, e não apenas Prisioneiros de nome que não queriam saber daquilo para nada, só que morriam.
Porque como sabemos, a função dos Guardas Prisionais é estabelecer a ordem.
Estes Prisioneiros eram tão vis, e como eram pelos vistos vários povos, até andavam em conflito entre si, e se não fossem os Guardas Prisionais, os Prisioneiros matavam-se uns aos outros, vejam lá! Portanto, mal por mal, mais valia serem os Guardas Prisionais a matá-los, que são quem estabelece a ordem.
Dentro dos Prisioneiros, havia uns que dominavam os outros Prisioneiros, e eram esses a causa da desgraça dos Prisioneiros no geral. Eram esses que os Guardas Prisionais queriam aniquilar, para que Guardas Prisionais e Prisioneiros pudessem finalmente (!) viver em paz e, quem sabe, para que os Prisioneiros se pudessem vir a chamar Prisioneiros e não prisioneiros.
O problema é que os Prisioneiros já eram Prisioneiros de raiz, pelos vistos, antes dos Guardas Prisionais, e portanto já estavam destinados a esta sina. Já eram todos Prisioneiros manhosos, e já queriam matar Guardas Prisionais. Os Guardas Prisionais só vieram fazer a função que lhes foi destinada, que foi estabelecer a ordem nos Prisioneiros, para que finalmente Guardas Prisionais e Prisioneiros pudessem viver em paz! Porque os Prisioneiros não viviam em paz e precisavam dos Guardas Prisionais para lhes mostrar a paz.
Por isso é que os Guardas Prisionais é que estabelecem a ordem, e por isso é que uns são Guardas Prisionais, e outros, Prisioneiros.
Ora, apesar dos Prisioneiros já o serem desde sempre, e a sua função de prisioneiros só ter sido finalmente cumprida com a vinda dos Guardas Prisionais, os prisioneiros eram a causa da opressão sentida pelos Guardas Prisionais.
Sempre que uns prisioneiros conseguiam atingir os Guardas Prisionais, estes cumpriam a sua função e estabeleciam a ordem, à grande, pela paz. Eram os prisioneiros que oprimiam os Guardas Prisionais.
Numa das alas da prisão, quando os Guardas Prisionais sacavam mais um pedacinho de cela e de pátio, verificava-se que os prisioneiros é que oprimiam os Guardas Prisionais.
Na outra ala da prisão, os prisioneiros nem sequer tinham controlo sobre a água e a electricidade. Mas, manhosos, eram eles que oprimiam os Guardas Prisionais.
Estavam lá aqueles prisioneiros mais astutos que de vez em quando faziam diabruras, e como para além desses, os Prisioneiros nem eram um só povo, ou matavam-se entre si, ou eram prisioneiros com letra pequena, ou qualquer outra merda, ou eram ratazanas, ou eram portadores de doenças, ou ratos, ou piolhos, ou baratas, ou raposas, ou abutres, ou demónios, ou agentes do mal, ou conspiradores, ou ameaças, como um povo o era há umas décadas noutro planeta doutro sistema solar, ou ainda militantes do Hamas, terroristas, merecedores de uma bomba nuclear, merecedores que lhes causem sofrimento, braços armados do Irão, antissemitas, antiisraelitas, odiadores da paz e dos Guardas Prisionais!!..
e sinceramente já não sei como ia acabar a frase. Mas a frase não precisa de ser acabada, mate-se e pronto. É a vida. Aliás, é a morte.
Morreram milhões de judeus no Holocausto. Ainda só morreram milhares de palestinianos.
Os judeus não tinham pátria. E agora têm uma pátria, mas os palestinianos não a têm. “Look, a shiny new place, just for ourselves! Gee whiz! Just you wait until I tell all my friends about this!”
Os judeus viviam pelo mundo inteiro, na terra que não era deles. Metade dos palestinianos vive na terra que não é deles. A outra metade também vive na terra que não é deles. Eles não são um povo, são vários povos, são coisas complicadas.
Ninguém sabe de onde eles vêm, nem quem são, tal como os Prisioneiros.
A paga justa pelo Holocausto é que se mataram triliões de alemães e a Alemanha deixou de fazer parte da História, até porque grande parte dos alemães (e estou a ser simpático ao não dizer todos) estava de conluio com os nazis.
“Claro que estavam. Então não haviam de estar? Como é que se deixou que isto acontecesse?”
Era Hitler, eram os generais, eram os intelectuais, eram os que aderiam à causa por convicção, eram os que aderiam à causa por medo, eram os que se recusavam e eram perseguidos ou mortos, eram os que fugiam, em suma, eram todos, mesmo todos.
Tal como os palestinianos que, de um modo ou de outro, acabam por ajudar, ou pertencer, ou simpatizar com o Hamas.
A lei de talião (“olho por olho, dente por dente”) não é originária da Torá, mas aparece nela.
Ao contrário do que se possa pensar, o objectivo desta lei não era permitir ou incitar à vingança. Era refrear a escalada da violência, pois se alguém me fizesse algo, eu não poderia retribuir numa medida maior.
Porque as palavras magoam mais que mil acções (por momentos pensei que fosse qualquer coisa ao contrário), devemos todos ficar preocupados com o patente antissemitismo de quem diz “Do rio até ao mar, a Palestina será livre”.
É claro como água que estas pessoas desejam a morte de todos os israelitas, provavelmente até de todos os judeus!
São estas considerações perniciosas que devem merecer atenção colectiva, porque as mortes palestinianas não se podem evitar, mas o choque que estas palavras provocam deve ser seriamente abordado.
Esta frase não cheira a “a Palestina será livre”. Cheira a antissemitismo. Porque “ser livre” significa destruir o Estado de Israel, o que significa matar todos os israelitas, e já agora, todos os judeus, que é para ser mesmo antissemita, como se os semitas fossem só os judeus.
Curiosamente, o plano inicial da ONU para a partilha da Palestina tem mesmo uma Palestina do rio até ao mar. Logo, a ONU é antissemita. Guterres é antissemita. Eu sou antissemita. “Je suis antissemita”.
Mas os responsáveis israelitas actuais disseram mesmo que se devia causar muito sofrimento em Gaza, e que uma bomba nuclear talvez fosse uma opção a considerar.
No entanto, nada disto cheira a nada.
Que lógica teima em focar exclusivamente os mil inocentes que morreram no dia 7 de Outubro em Israel por oposição às dezenas de milhares de inocentes que têm morrido fora de Israel, por serem o próprio Hamas, amigos do Hamas, escudos humanos do Hamas, danos colateirais por causa do Hamas, eternos aprendizes de terroristas com ódio aos judeus?
Hoje somos nós, os alemães que eram o Hitler, ou os generais, ou os intelectuais, ou os que aderiam à causa por convicção, ou por medo, ou que se recusavam a tomar parte, ou que fugiam, ou que gritavam, ou que calavam, ou que muito podiam fazer, ou que pouco podiam fazer.
Mas somos nós.
“Matemos o Hamas. Matemos o Hezbollah. Matemos o braço armado do Irão. Matemos todos os nossos inimigos. Temos de viver em paz.
Temos de viver em paz na terra que mana leite e mel. Temos de viver em paz, na terra que Deus nos deu.”
Temos de viver em guerra, na terra que Deus nos deu.
João Barreiro
Maravilha de texto!! Irónico, lúcido, certeiro… E tão triste.
Do rio até ao mar 🍉