Quase Retratos, por António de Almeida Santos, Editorial Notícias, 1999, é uma recolha de gente admirada por alguém que foi governante, deputado (pelas minhas contas, o maior tribuno que passou pela Assembleia da República), presidente da Assembleia da República e presidente do PS. Um paraninfo para grandes escritores do passado, para políticos nacionais, para amigos, culminando com um texto desvanecido para Natália Correia. Começa em Almeida Garret, prossegue com o Padre António Vieira, o professor Bissaya Barreto, um companheiro de Coimbra, chega ao marechal Costa Gomes, exalta a figura de Gavroche (menino inesquecível do romance Os Miseráveis), não falta o bispo de Setúbal Manuel Martins e Nehru, figura inescapável do movimento anticolonial encetado na década de 1950.
Escritor exímio, portador de uma narrativa luminescente, discurso fluido, possuidor de um recorte clássico, António de Almeida Santos tinha o dom singular de discursar tão apropriadamente como usava a escrita. Aqui e acolá, não esconde as razões das afinidades afetivas, veja-se estes parágrafos que ele dedica ao Padre António Vieira:
“Durante muito tempo, extratos dos seus sermões foram o meu breviário. Tentei identificar-me sempre com a sua espantosa maneira de dizer as coisas. Ele foi para mim, e ainda é, a personificação da língua portuguesa. Há Camões, eu sei. A sua lírica ainda me deleita. O seu poema épico ainda me empolga. E há Mestre Gil, o supremo jogral. E Eça, o da inultrapassável ironia. E Pessoa, poeta genial que tem de comum com Vieira o apelo messiânico, o nacionalismo redentorista e a familiaridade com o sobrenatural. E o Grão-Vasco, a Josefa de Óbidos, o Columbano. E D. João II, para só citar o mais perfeito dos príncipes. O génio encarnou muitas vezes no meio de nós. Não nos é, enquanto Povo, nem alheio nem estranho.
Apesar disso, o Padre António Vieira tem um lugar à parte na galeria dos nossos maiores. Se a Pátria, segundo Pessoa, é a língua portuguesa; se Vieira foi, no dizer do mesmíssimo Pessoa, ‘o imperador da língua portuguesa’, ele continua a ser, através do registo dos seus escritos, um dos mais altos expoentes da personificação da Pátria.”
Não navegando no mesmo curso de ideias, curva-se perante o homem a sua obra, tece uma laude incomparável ao professor Bissaya Barreto:
“Ao ser competente e cumpridor como professor universitário, criou um paralelo hostil aos incompetentes e aos relapsos. Ao ter êxito profissional como expoente da cirurgia, hostilizou os falsos expoentes da Medicina. Ao ter a resistência de um Hércules, criou um paralelo desconfortável ao complexo dos débeis. Ao enriquecer, fez inveja aos de carteira vazia. Ao dar-se com Salazar, despertou inútil emulação dos que tinham essa mesma aspiração e compreensível desagrado nos que a sacudiam. Ao criar uma aura de distanciamento e mistério, enchei de raiva os de leitura fácil. Por último – mas talvez sobretudo – ao fustigar impiedosamente o escolasticismo, o conservadorismo e o atraso do ensino universitário em geral e da Medicina em especial, e ao denunciar a indigência das condições de trabalho na universidade e no respetivo hospital – com palavras mais duras que o látego com que Cristo fustigou os fariseus – aproximou-se de arranjar um detrator e um inimigo em cada colega.”
Tive a sorte de assistir ao lançamento na sede do Círculo de Leitores de uma obra biográfica do marechal Costa Gomes. O apresentador foi Almeida Santos, a homenagem ao mais distinto militar português do século XX foi tocante:
“Foi acusado de transigências, equilíbrios e manobras. Que ninguém o julguem sem se imaginar no epicentro do tornado que era o seu lugar. Mas eram tão opostas as críticas que lhe dirigiam que a própria contradição as neutralizava. Acusado de estar feito com os americanos e com os russos; de ser beato e de ser comunista; de ser imperialista e apóstolo da paz, Costa Gomes foi sempre vítima de um mistério e da reserva que são apanágio da sua personalidade. Fosse ele mais transparente e menos enigmático, e não teria podido driblar, como driblou, os que tentavam puxá-lo para extremismos, que sempre repudiou ou aventuras que conseguiu evitar.
Quando se faz o balanço da gestão do processo revolucionário, uma ideia ressalta: o País deve a Costa Gomes o alto serviço de ter evitado a guerra civil.
Os democratas devem-lhe ainda um outro altíssimo serviço: o de se ter oposto com determinação às tentativas do adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte, de novo sobre o pretexto de que o País não estava preparado para um regime civil, aberto e baseado no voto livre, direto e universal.
Assistia a duas ou três reuniões de alto nível, nas quais o adiamento foi defendido! E posso testemunhar que em todas elas o presidente Costa Gomes matou a conversa com singular firmeza, mais ou menos nestes termos:
“- Prometemos ao Povo Português que havia eleições. Enquanto em for presidente, vai haver eleições!”
Almeida Santos confessará que escreveu o texto quando o Gavroche tinha 26 anos, já era um grande escritor na rampa de lançamento:
“Vais dizer-me que já não há barricadas hoje em dia. Isso, porém, não é verdade. Uma barricada, não é um monte de barricas; é um amontoado de convicções. E, por detrás delas, tu podes correr como uma esperança a erguer do chão os que se cansaram de lutar. As barricadas não se vêm. Mas estão sempre onde quiseres senti-las.
Vá, Gavroche. Rouba uma estrela do céu. Quando o Sol fechar os olhos, tu roubas a mais bela. Depois, vais por esse mundo a correr como tu sabes, e a tocar com ela a fonte submissa de todos os resignados. Aquece-lhes o barro. Funde-o em sangue novo. Torna mais uma vez o céu possível. E faze disso uma nova brincadeira, já que tens necessidade de brincar, ‘porque és desgraçado’, meu amor.”
Recorda a mais linda mulher de Lisboa, Natália Correia, particularmente faiscante, rebelde e livre, a deusa do Botequim, no Largo da Graça, a deputada envolvida em causas, travessa, como ele conta, a propósito de um deputado que durante um debate sobre a legalização do aborto esconjurara o uso de contracetivos, afirmando que o ato sexual só se justificava para fins de procriação, Natália, pela surda, fez passar pelas bancadas o seguinte poema:
“Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado,
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca.
Sendo pai só de um rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função faz o órgão – diz o ditado –
consumada essa exceção,
ficou capado o Morgado!”
É por estas e por outras que venho recorrentemente pasmar-me com tão belas discursivas, guardando sempre na memória a dimensão gigantesca da sua verve tribunícia.
Mário Beja Santos