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Leituras inextinguíveis (141): Vultos de eleição de um dos maiores tribunos da democracia gerada pelo 25 de Abril

Quase Retratos, por António de Almeida Santos, Editorial Notícias, 1999, é uma recolha de gente admirada por alguém que foi governante, deputado (pelas minhas contas, o maior tribuno que passou pela Assembleia da República), presidente da Assembleia da República e presidente do PS. Um paraninfo para grandes escritores do passado, para políticos nacionais, para amigos, culminando com um texto desvanecido para Natália Correia. Começa em Almeida Garret, prossegue com o Padre António Vieira, o professor Bissaya Barreto, um companheiro de Coimbra, chega ao marechal Costa Gomes, exalta a figura de Gavroche (menino inesquecível do romance Os Miseráveis), não falta o bispo de Setúbal Manuel Martins e Nehru, figura inescapável do movimento anticolonial encetado na década de 1950.

António de Almeida Santos
António de Almeida Santos

Escritor exímio, portador de uma narrativa luminescente, discurso fluido, possuidor de um recorte clássico, António de Almeida Santos tinha o dom singular de discursar tão apropriadamente como usava a escrita. Aqui e acolá, não esconde as razões das afinidades afetivas, veja-se estes parágrafos que ele dedica ao Padre António Vieira:

“Durante muito tempo, extratos dos seus sermões foram o meu breviário. Tentei identificar-me sempre com a sua espantosa maneira de dizer as coisas. Ele foi para mim, e ainda é, a personificação da língua portuguesa. Há Camões, eu sei. A sua lírica ainda me deleita. O seu poema épico ainda me empolga. E há Mestre Gil, o supremo jogral. E Eça, o da inultrapassável ironia. E Pessoa, poeta genial que tem de comum com Vieira o apelo messiânico, o nacionalismo redentorista e a familiaridade com o sobrenatural. E o Grão-Vasco, a Josefa de Óbidos, o Columbano. E D. João II, para só citar o mais perfeito dos príncipes. O génio encarnou muitas vezes no meio de nós. Não nos é, enquanto Povo, nem alheio nem estranho.

Apesar disso, o Padre António Vieira tem um lugar à parte na galeria dos nossos maiores. Se a Pátria, segundo Pessoa, é a língua portuguesa; se Vieira foi, no dizer do mesmíssimo Pessoa, ‘o imperador da língua portuguesa’, ele continua a ser, através do registo dos seus escritos, um dos mais altos expoentes da personificação da Pátria.”

Presidente da República Francisco da Costa Gomes conversando com o presidente dos EUA, Gerald Ford, estão presentes, entre outros, Henry Kissinger e Mário Soares, 1974
Presidente da República Francisco da Costa Gomes conversando com o presidente dos EUA, Gerald Ford, estão presentes, entre outros, Henry Kissinger e Mário Soares, 1974

Não navegando no mesmo curso de ideias, curva-se perante o homem a sua obra, tece uma laude incomparável ao professor Bissaya Barreto:

“Ao ser competente e cumpridor como professor universitário, criou um paralelo hostil aos incompetentes e aos relapsos. Ao ter êxito profissional como expoente da cirurgia, hostilizou os falsos expoentes da Medicina. Ao ter a resistência de um Hércules, criou um paralelo desconfortável ao complexo dos débeis. Ao enriquecer, fez inveja aos de carteira vazia. Ao dar-se com Salazar, despertou inútil emulação dos que tinham essa mesma aspiração e compreensível desagrado nos que a sacudiam. Ao criar uma aura de distanciamento e mistério, enchei de raiva os de leitura fácil. Por último – mas talvez sobretudo – ao fustigar impiedosamente o escolasticismo, o conservadorismo e o atraso do ensino universitário em geral e da Medicina em especial, e ao denunciar a indigência das condições de trabalho na universidade e no respetivo hospital – com palavras mais duras que o látego com que Cristo fustigou os fariseus – aproximou-se de arranjar um detrator e um inimigo em cada colega.”

Tive a sorte de assistir ao lançamento na sede do Círculo de Leitores de uma obra biográfica do marechal Costa Gomes. O apresentador foi Almeida Santos, a homenagem ao mais distinto militar português do século XX foi tocante:

“Foi acusado de transigências, equilíbrios e manobras. Que ninguém o julguem sem se imaginar no epicentro do tornado que era o seu lugar. Mas eram tão opostas as críticas que lhe dirigiam que a própria contradição as neutralizava. Acusado de estar feito com os americanos e com os russos; de ser beato e de ser comunista; de ser imperialista e apóstolo da paz, Costa Gomes foi sempre vítima de um mistério e da reserva que são apanágio da sua personalidade. Fosse ele mais transparente e menos enigmático, e não teria podido driblar, como driblou, os que tentavam puxá-lo para extremismos, que sempre repudiou ou aventuras que conseguiu evitar.

Quando se faz o balanço da gestão do processo revolucionário, uma ideia ressalta: o País deve a Costa Gomes o alto serviço de ter evitado a guerra civil.

Os democratas devem-lhe ainda um outro altíssimo serviço: o de se ter oposto com determinação às tentativas do adiamento das eleições para a Assembleia Constituinte, de novo sobre o pretexto de que o País não estava preparado para um regime civil, aberto e baseado no voto livre, direto e universal.

Assistia a duas ou três reuniões de alto nível, nas quais o adiamento foi defendido! E posso testemunhar que em todas elas o presidente Costa Gomes matou a conversa com singular firmeza, mais ou menos nestes termos:

“- Prometemos ao Povo Português que havia eleições. Enquanto em for presidente, vai haver eleições!”

Almeida Santos confessará que escreveu o texto quando o Gavroche tinha 26 anos, já era um grande escritor na rampa de lançamento:

“Vais dizer-me que já não há barricadas hoje em dia. Isso, porém, não é verdade. Uma barricada, não é um monte de barricas; é um amontoado de convicções. E, por detrás delas, tu podes correr como uma esperança a erguer do chão os que se cansaram de lutar. As barricadas não se vêm. Mas estão sempre onde quiseres senti-las.

Vá, Gavroche. Rouba uma estrela do céu. Quando o Sol fechar os olhos, tu roubas a mais bela. Depois, vais por esse mundo a correr como tu sabes, e a tocar com ela a fonte submissa de todos os resignados. Aquece-lhes o barro. Funde-o em sangue novo. Torna mais uma vez o céu possível. E faze disso uma nova brincadeira, já que tens necessidade de brincar, ‘porque és desgraçado’, meu amor.”

Recorda a mais linda mulher de Lisboa, Natália Correia, particularmente faiscante, rebelde e livre, a deusa do Botequim, no Largo da Graça, a deputada envolvida em causas, travessa, como ele conta, a propósito de um deputado que durante um debate sobre a legalização do aborto esconjurara o uso de contracetivos, afirmando que o ato sexual só se justificava para fins de procriação, Natália, pela surda, fez passar pelas bancadas o seguinte poema:

“Já que o coito – diz Morgado –

tem como fim cristalino,

preciso e imaculado,

fazer menina ou menino;

e cada vez que o varão

sexual petisco manduca,

temos na procriação

prova de que houve truca-truca.

Sendo pai só de um rebento,

lógica é a conclusão

de que o viril instrumento

só usou – parca ração! –

uma vez. E se a função faz o órgão – diz o ditado –

consumada essa exceção,

ficou capado o Morgado!”

É por estas e por outras que venho recorrentemente pasmar-me com tão belas discursivas, guardando sempre na memória a dimensão gigantesca da sua verve tribunícia.

Mário Beja Santos

 

 

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