António Tavares venceu o Prémio Leya em 2015 com O Coro dos Defuntos, obra magnífica, é um autor manifestamente inclassificável, não está prisioneiro a qualquer corrente literária, parece não estar na moda. Em 2019, reapareceu com Homens de Pó, ele que nasceu no Lobito em 1960 é certo e seguro que grava aqui a fogo e raiva episódios descomunais desse tempo mais do que turbulento, a retirada de Angola e a chegada a Portugal, onde se vivia outro tipo de convulsão. O leitor vê-se obrigado, aqui e acolá, a ir ao glossário, para saber que avilo é termo angolano para se referir amigo ou companheiro, calundu significa mau-humor, bicuatas é o conjunto de móveis ou objetos de casa, muata é o mesmo que patrão e muadiê é indivíduo geralmente mais velho ou respeitável.
Começaram os combates, o hospital era um cemitério, cheiro intenso a carne queimada, as multidões estão em fuga, o cais repleto de caixotes de madeira e viaturas abandonadas, o barco desacostou e partiu. O romancista impõe a linguagem crua, golpeada, descrições sumárias: “Era um navio de transporte de combustíveis e cheirava a gasóleo. Não tinha cabines para passageiros; íamos no exterior. Debruçado na amurada, percebi que ia muito abaixo da linha de água. O cheiro empestava o espaço e ficávamos com as narinas a arder. O capitão era um muadiê mestiço que vestia um blusão de cabedal, calças e camisa azuis. Pequenas traineiras e outros barcos foram seguindo o navio. Saltavam as ondas como golfinhos. As pessoas acenavam, ensaiando gritos de chamamento. Aos poucos foram deixando nos seguir e tornaram-se minúsculas, até serem só um pontinho no azul imenso da baía.”
Marcas do caos por toda a parte, tanto da terra de onde se partiu como à chegada, todos vêm à procura de refúgio, por ali andam caixotes, malas velhas. Partiu-se de um ponto de Angola, sabe-se lá se não foi do Lobito, a chegada é um inferno, vai estalar a guerra civil em Luanda, sonha-se com um avião que os leve a um verdadeiro refúgio, partiram numa madrugada. E assim se chega ao velho mundo, a receção não foi lá muito feliz:
“Lembro-me de um silo-auto em cimento bruto. Um edifício inacabado, com rampas de ligação de uns pisos para os outros. O teto era tosco e os fios elétricos pendiam como lagartixas brancas sobre as nossas cabeças. Havia muadiês e candengues (crianças) deitados pelos cantos, de pé, em filas intermináveis; levavam maços de papéis nas mãos, que ostentavam inúmeros carimbos, falavam alto, gritavam e ralhavam.
A fila maior era a que permitia trocar dinheiro. Muita gente, com malas cheias de notas sem valor, arrastava tesouros perdidos. A moeda angolana era uma merda; simples papel. O trabalho de uma vida podia estar num daqueles sacos ou malas e não valia nada, não tinha utilidade, era lixo. Tinha-se imposto um limite para a troca, o qual permitia viver menos de um mês. Passavam-se horas nessa bicha e contava-se o que se recebia em escassos segundos.”
O narrador está numa babel de gentes e línguas, vai ser encaminhado para o seu destino, um centro de acolhimento, com mais de meia dúzia de famílias. Nasceu um mundo de novas relações, mesmo quando ele se encontra com gente afim. É nisto que ele recebe uma carta de uma empresa de terraplanagem. “Segui para o Norte. Procurei a mãe, antes de partir. Dissera-me que tinha ido para o Alentejo com um homem que passava filmes de terra em terra. Fui parar aos arranjos de ligação de um troço de autoestrada, perto do Porto. Éramos muitos, trabalhávamos como bestas e ganhávamos mal. Mandaram-me recolher amostras de terra; enterravam-se um tubo num piso já calcado pela ação do cilindro e recolhia-se o solo entubado. No laboratório faziam-se análises para perceber se o chão estava bem compactado e se aguentaria o peso do tráfego.” Resultado: “A azáfama das máquinas e o ruído que produziam transtornavam-nos. Tínhamos descido ao inferno e alguns não aguentavam.”
Viviam em contentores, vamos conhecer os companheiros do narrador, o FBP e o Bombazine, o primeiro angolano, o segundo guineense. Dão-se conta de que há um turbilhão de acontecimentos neste seu novo país, vigilância popular, jornadas unitárias, assembleias de unidade, poder popular; aparece mais um companheiro, o Patex, isto numa altura em que se queimam sedes de partidos de esquerda, dá-se a independência de Moçambique, os Açores estão em cólera e um grupo de agricultores de Rio Maior anda de moca em riste; aparece Machel, um moçambicano divertido, que vivia uma paixão com uma Alice, moradora no Laranjeiro. “A Comissão pró-Comissão de Moradores e a Liga dos Operários das Estradas de Portugal, em comunicado devidamente assinado, fizeram saber à costureira Alice que o seu interlocutor postal tinha falecido, com honra e glória, ao serviço do trabalho e da revolução. Salientava a mensagem que técnico de cofragem Celestino Alberto, mais conhecido por Machel, repousava numa terra onde nunca sonhara vir a parar e na qual se sentia um apátrida, porque já não tinha esperança de regressar à sua aldeia perto de Tete, na margem do Zambeze, onde crescera a plantar milho e a pescar no rio.”
Entenda-se esta metáfora de Homens de Pó, é o torvelinho de um país agitado, onde se engendram novas combinatórias de relações sociais, económicas e políticas. A terraplanagem é outra dimensão da metáfora, o país está imerso em pancadaria, fazem-se as estradas, rompem-se caminhos, soçobra a esquerda radical, aparece o almirante sem medo, como também aparecem novos companheiros como Bruce Lee e o Pivô, parecia que o país tinha atingido o auge da insanidade, há um angolano conhecido por Rapaz-Ciência, está furioso com aquela guerra mortífera no seu país. Há a vaga intuição, lá no estaleiro, que o chamado processo revolucionário já conheceu melhores dias, há como que um esticar da corda, intensificam-se as manifestações, o Governo não governa, vão chegando ao porto de Leixões os pertences de quem veio de fugida pelas parcelas mais ricas do Império.
O narrador conduz-nos subtilmente para uma aproximação destas espécies de retornados e de todos aqueles que vivem em Portugal, a revolução que se esfuma. O narrador apaixona-se por Júlia, estuda à noite, há explosões mortais enquanto se abrem as estradas, assim morre o Rapaz-Ciência. Damos conta que Marinho, o encarregado da obra, tem a sua lábia para chegar a resultados, sabe levar a malta da obra à certa. As manifestações agudizam-se, veio o 25 de Novembro. Há dados na memória do narrador que se ajustam à arquitetura da escrita, o mano que morreu na guerra em Angola, a mãe que desapareceu, talvez no Alentejo. “Nós, os de Estaleigrado, estávamos sozinhos a construir uma estrada num país que se quebrava e renascia em novas palavras. Onde emergiam e morriam sonhos, esperanças e desalentos, acordavam lágrimas e alegrias.”
A dita esquerda radical entra em refluxo. E temos uma leitura crítica, ácida mesmo, sobre o aproveitamento e o viver daquela gente que viera às centenas de milhares de África:
“Em Lisboa e no Porto, os retornas podiam ser dispensados. Haviam sido úteis para suster o avanço da extrema-esquerda e dos comunistas e para criar alguma agitação social nas ruas. Mantinham-se nos hotéis, pensões e residenciais, todos degradados. Os que tinham procurado o interior do país encontraram trabalho e integravam-se nas comunidades; os das grandes cidades eram palhas partidas num limbo; sofriam da perda de identidade, de passado e de esperança no futuro. Demandavam as periferias, encafuavam-se em bairros de lata, viviam de esquemas e tráficos vários. Os políticos da direita com nostalgia do Império só se preocupavam com os que tinham posses, nome e dinheiro. Pediam indeminizações e a reconversão da moeda.”
Chegou a hora de mudar de estaleiro, o que se passou depois do 25 de Novembro já lá vai, os trabalhadores revolucionários adaptam-se. E é nisto, numa ida ao circo, que o narrador encontra a mãe, é um quadro de exultação geral, vêm todos para a rua abraçados de espanto, enquanto o espetáculo lá dentro continua.
Uma belíssima elegia sobre o caleidoscópio que o 25 de Abril trouxe a Portugal, a identidade para todos estes homens de pó, este o poder faiscante da metáfora de António Tavares.
Mário Beja Santos