A badana no livro Correr, pelo premiado escritor Jean Echenoz, Cavalo de Ferro, 2010, é elucidativa da empolgante narrativa que vai prender o leitor:
“Logo após a guerra, em 1946, nos campeonatos organizados pelas forças aliadas em Berlim, atrás do cartaz Checoslováquia, para grande chacota do público presente, vem apenas um único atleta, magro e escanzelado. Mas quando nos 5 mil metros aquele atleta não só se desembaraça em poucos minutos dos seus mais possantes adversários com uma volta de avanço, como agora começa a ultrapassá-los novamente, um a seguir ao outro e, quando estes abrandam, ele volta a acelerar, cada vez mais. De boca aberta ou aos gritos, o público do estádio já não aguenta mais. Aquilo não é normal gritam, aquele tipo faz tudo o que não deveria fazer e ganha! O nome daquele rapaz magro e louro de sorriso aberto nunca mais ninguém o esquecerá: Emil Zatopek. Poucos anos e dois Jogos Olímpicos depois, Emil torna-se invencível. Detém todos os recordes. Ninguém o consegue parar: nem mesmo o regime checo, que o espia, distorce as suas declarações à imprensa e limita as suas idas ao estrangeiro. Emil corre, e corre sempre mais rápido do que todos. Nem sequer Moscovo o consegue parar: nem nas minas de urânio, onde o exilam por ter apoiado a primavera política de Dubcek, ou sequer depois disso, quando o obrigam a recolher atrás do camião o lixo urbano de Praga.”
Temos aqui a empolgante história de um corredor mítico, um checo nascido na região de Ostrava, oriundo de uma família humilde, um casal com sete filhos, é um adolescente quando Hitler ocupou a região, não é amante do desporto, de repente descobre que gosta de correr, passa a treinar desenfreadamente em qualquer estação do ano. Vai dar que falar aos vinte anos, em Praga, no campeonato que opõem a Boémia à Morávia. Não nos esqueçamos que preceitos técnicos hoje banais eram naquele tempo conhecidos, caso do sprint final, o corredor era induzido a dividir o esforço, a reparti-lo ao longo da prova. Só que Emil quer saber até onde vai a sua resistência física, treina nos terrenos mais ásperos, quer saber até onde pode ir, começa a bater recordes. Ele começa a ser um nome a ser um nome do desporto quando a guerra acabou, Emil é militar. É convocado para os primeiros convocados da Europa depois do Pós-Guerra, em Oslo, estão lá os campeões do tempo, a começar pelo campeão finlandês; é aqui que ele vai correr pela primeira vez na sua vida com os melhores atletas do mundo, chega em quinto lugar.
Volta ao seu país, onde acumula recordes, chegou a hora de representar o exército checoslovaco no campeonato das forças aliadas em Berlim. Dá brado, pulverizou o recorde checoslovaco. Afinal, o que o distingue? É a prosa de Jean Echenoz quem ilumina o corredor tão extravagante: “Emil progride de uma maneira pesada, descomposta, torturada, toda aos repelões. Não esconde a violência de um esforço que se lê no seu rosto crispado, contraído, deformado, continuamento torcido por um esgar penoso de se ver. Os traços do seu rosto são alterados, são quase rasgados por um sofrimento horroroso, como se tivesse um escorpião alojada em cada sapatilha. Tem um ar ausente quando corre, terrivelmente alheado, tão concentrado que não parece ali estar, exceto que está lá a mais do que ninguém e, recolhido entre os ombros, sobre o seu pescoço sempre inclinado para o mesmo lado, a sua cabeça oscila incessantemente, bamboleia-se e sacode-se da direita para a esquerda.”
É dotado de outras particularidades, consegue esgotar os seus adversários graças a um grande número de sprints intercalados, enquanto reserva as forças para a sua ponta final. “A sua velocidade modifica-se constantemente durante a corrida, toda em tempos partidos, em subtis mudanças de velocidade das quais os que correm atrás dele se queixam amargamente. Porque não só lhes é praticamente impossível aquilo sem desregularem a pequena passada curta, entrecortada, desigual e sacudida, que Emil tricota, não só estas variações de ritmo incessantes que lhes complicam horrivelmente a vida, não só este comportamento bizarro e sofredor, articulado em gestos retesados de autómato os desencoraja porque os engana. Mas, além disso, a oscilação perpétua da sua cabeça e o moinho permanente dos seus braços também lhes provocam vertigens. Um dia será calculado que, só a treinar, Emil terá dado três voltas à Terra a correr.”
Passou a ser uma vedeta mundial, deitará por terra todos os recordes, ultrapassou todos os gigantes do seu tempo, passa a ser proverbial receber medalhas de ouro. Título atrás de título, é campeão do mundo, os dez mil dos cinco mil, bate os recordes dos 20 km e o recorde da hora, torna-se no primeiro homem da História a correr mais de 20 km numa hora. O Estado vê nele uma bandeira da propaganda, a polícia secreta espia-o. Tem agora 30 anos quando se apresenta nos Jogos de Helsínquia, sucedem-se as medalhas de ouro, inclusivamente ganha a maratona. É agora um herói nacional, isto num tempo em que começam os famigerados julgamentos de Praga, é incitado a acusar os traidores, ele que literalmente não conhece ninguém, mas o regime precisa da anuência do homem mais veloz sobre a Terra. “Além do ouro acumulado na Finlândia, tornou-se no homem dos oito recordes do mundo, nas distâncias superiores aos 5 mil metros: 6, 10 e 15 milhas; 10, 20, 25 e 30 km sem falar do recorde da hora.” Triunfa na corrida de S. Silvestre em São Paulo, Brasil, no corta-mato em Paris. Mas o declínio era inevitável, ainda conhecerá outros sucessos, irá depois apoiar a Primavera de Praga, a tentativa de Dubcek e os seus pares em procurarem humanizar o socialismo, os soviéticos entram na Checoslováquia, Zatopek torna-se num proscrito.
Mas não será um proscrito qualquer, será um empregado do lixo que quando percorrer as ruas de Praga, toda a gente irá à janela para o ovacionar. “Depois, os meus camaradas de trabalho recusam que ele recolha o lixo e o próprio contenta-se em correr com uma passada curta atrás do camião, debaixo de encorajamentos, como dantes. Todas as manhãs, aquando da sua passagem, os habitantes do bairro destinado à sua equipa de limpeza descem até ao passeio para o aplaudirem, esvaziando o seu próprio lixo no respetivo caixote. Nunca nenhum empregado do lixo do mundo terá sido tão aclamado.
Jean Echenoz tem a capacidade de reduzir o essencial todo o seu poder narrativo, desembaraça-se de todo e qualquer pormenor que nada acrescente à moldura descritiva, e daí este livro emocionante que nos dá a conhecer a vida excecional de um dos maiores mitos da vida desportiva, instrumentalizado como veículo de propaganda, um herói que caiu em desgraça, mas mesmo como varredor de lixo triunfava nas ruas, sempre ovacionado pelo seu povo.
De leitura obrigatória, tal o esplendo da escrita.
Mário Beja Santos