O romance histórico O Leopardo de Tomasi di Lampedusa continua a ser uma narrativa avassaladora, ainda por cima associado a um filme de Luchino Visconti, que a crítica mundial consagra no topo da melhor filmografia. Quando surgiu em Itália constituiu imediatamente um fenómeno editorial, cerca de meio milhão de cópias, as traduções multiplicaram-se, os grandes escritores, como Aragon, incensaram-no, era um milagre da literatura. O seu autor, que não chegou a ver a sua prosa impressa era o Príncipe de Lampedusa, Giuseppe Tomasi, também Duque de Palma, aristocrata italiano, acalentou a ideia deste livro, que tivesse a forma sintética da sua experiência humana, um misto de biografia, história e ficção. O que há assim de tão fulgurante nesta obra-prima, que mantém a sua frescura, e a sua tão temível mensagem?
Estamos em maio de 1860, os homens de Garibaldi já se encontram na Sicília, a monarquia dos Bourbons está nas vascas da agonia, a Sicília será integrada no reino de Itália. D. Fabrício, Príncipe de Salina é o narrador da obra. Estamos na recitação quotidiana do rosário, a família junta no salarão rococó, também presente o Padre Pirrone. O autor aproveita todas as oportunidades para descrever a beleza dos ambientes, logo esta sala, onde já findou o ato religioso:
“No fresco do teto as divindades acordaram. Filas de tritões e dríades precipitavam-se dos montes e mares, entre nuvens cor de framboesa e lilás, em direção a uma transfigurada Concha de Oiro, a fim de exaltar a glória da Casa de Salina; tão transbordantes de satisfação se mostravam que as mais elementares regras de perspetiva foram violadas. E os Deuses maiores, os príncipes entre os Deuses, Júpiter o Fulgurante, Marte o Carrancudo, Vénus a Langorosa, que haviam precedido a multidão dos Deuses menores, pareciam agora sustentar boa vontade o escudo azul com o Leopardo dançando.” D. Fabrício passeia-se pelo jardim perfumado na companhia do cão, recorda as audiências com o rei Fernando de Bourbon no Palácio de Caserta, nem sempre recordações felizes, segue-se o jantar e no final o dono da casa anuncia que vai a Palermo, leva consigo o Padre Pirrone, vai à procura de sexo, pela primeira vez se fala em Tancredo, o sobrinho amado, é belo mas o pai deixou-o sem nada, Tancredo aparecerá na manhã seguinte no palácio do tio anunciado que se vai juntar aos rebeldes de Garibaldi, justifica-se com a frase chave que atravessará o quadro moral do romance:
“Se nós não estivermos lá, eles fazem uma república. Se queremos que tudo fique como está é preciso que tudo mude.”
E o príncipe entrega-se às atividades de administração, recebe o guarda-livros, Don Ciccio, “era um homenzinho seco que escondia a sua alma de liberal ambicioso e rapace por detrás de uns óculos tranquilizadores de gravatas imaculadas”. E de novo, o Príncipe de Lampedusa embevece-se e deslumbra-nos com recortes panorâmicos:
“Abriu uma das janelas da torre: a paisagem exibia todas as suas belezas. Sob o fermento de um Sol forte todas as coisas pareciam perder o peso: o mar, ao fundo, era uma mancha de pura cor; as montanhas que, de noite, lhe haviam parecido esconder terríveis armadilhas, eram agora massas de vapor prestes a dissolver-se; mesmo a torva Palermo, como o rebanho aos pés do pastor, estendia-se, saciada, ao redor dos conventos; no porto, os navios estrangeiros ancorados, enviados na previsão de distúrbios, não bastavam para pôr uma nota de perigo naquela calma majestosa.” Uma das ocupações do príncipe passa pela astronomia, toca a sineta para o almoço, o foco dirige-se agora para a filha mais velha, Concetta, o príncipe desconfia que anda por ali uma paixoneta por Tancredo. Findo o almoço, recebe dois rendeiros e depois faz a sua sesta, chegam as notícias de que os rebeldes estão em marcha.
A família do príncipe, todos os Salina, partem para a vilegiatura em Donnafugata, viagem tormentosa, receção calorosa, cumprem-se as obrigações protocolares, incluindo o Te Deum na igreja matriz. O responsável pela municipalidade é don Calogero Sedara, assumirá grande importância no desenrolar dos acontecimentos, é possuidor de enorme fortuna, é homem do regime que vai vingar, o liberal, e a sua filha Angélica casará com Tancredo, imagem da verdadeira consolidação de que tudo mudou para ficar na mesma. O administrador informa o príncipe sobre rendas e proveitos, é ele quem enuncia que don Calogero terá dentro de pouco tempo rendimentos iguais aos do príncipe. Padre Pirrone bem tenta atrair o dono da casa para a responsabilidade de preparar a filha para um casamento com o primo, fica desorientado com a argumentação do príncipe, durante o jantar de receção acende-se uma faúlha entre Tancredo e Angélica. A descrição do jantar é soberba, como soberba é a ida da família Salina ao mosteiro do Espírito Santo para rezar sobre o túmulo da beata Corbera, antepassada do príncipe.
As ocupações de D. Fabrício em férias passam pelas caçadas, procura acalmar a mulher, esta passou a abominar o sobrinho, um liberal, imagine-se, ainda por cima com olhinhos de carneiro mal morto para a Angélica, as conversas de D. Fabrício com os seus colaboradores são pirotecnia literária, equilibram os quadros de descrição que de interiores quer de exteriores deste mundo siciliano.
A construção do romance centra-se agora em Tancredo e Angélica, é ali que está o que tudo vai mudar para tudo ficar na mesma, o casamento entre Tancredo, um Príncipe di Falconéri e uma neta do Peppe Merda. Está feito o acordo nupcial, finda a estadia em Donnafugata. Regresso a Palermo, recebe em audiência o cavaleiro Aimone Chevalley di Monterzuolo, virá tratar de um assunto de muito interesse para o Governo, depois de bom acolhimento o Príncipe de Salina é informado de que o Governo o gostaria de ver como senador, recusa e dá explicações:
“Somos velhos, Chevalley, terrivelmente velhos. Há pelo menos 25 séculos que carregamos aos ombros o peso de magníficas civilizações heterogéneas, todas vindas de fora, nenhuma germinada entre nós, nenhuma a que tenhamos dado o tom; nós somos brancos como o senhor, Chevalley, e como a rainha de Inglaterra; e, no entanto, há 2500 anos que somos uma colónia. O senhor falava-me há pouco de uma jovem Sicília que se abria às maravilhas do mundo moderno; por minha parte, eu vejo-a mais facilmente como uma velha centenária arrastada numa cadeirinha de rodas (…) Todas as manifestações sicilianas são manifestações oníricas: a nossa sensualidade é desejo de olvido, os tiros e as nossas facadas, desejo de morte; desejo de imobilidade voluptuosa, também desejo de morte como a nossa preguiça.” É a conversa determinante do romance que nos explica a ideologia do príncipe e as concessões a que se vai entregar e que quer o romance quer o filme de Visconti vão explodir na cena do baile, as deambulações do príncipe pelas salas, o figurão do par Angélica-D. Fabrício. “Os pés enormes do Príncipe moviam-se com delicadeza surpreendente e jamais os sapatinhos de cetim da sua dama correram o risco de ser aflorados; o queixo apoiava-o na onda noturna dos cabelos dela. Do decote de Angélica subia um perfume de bouquet à la Maréchale e, sobretudo, um aroma a pele jovem e lisa.”
E, por fim, o príncipe sai de cena, estamos em julho de 1883, está débil, ressequido, as faces encovadas, um Leopardo em péssima forma, há como que uma preparação para a partida, confessa-se, parte com uma síncope, está rodeado por todos os seus, terá sonhado que aparecera uma jovem esbelta, a criatura desejada, e ele supos que era a ordem de partir.
E ficarão as memórias, estamos em maio de 1910, tudo mudara, a morte do cão é o último sinal que desaparecera, com aquele montículo de poeira lívida, um mundo de sedução. Décadas mais tarde, os bombardeiros norte-americanos hão de reduzir o palácio a um montão de cinzas e destroços. Vão ficar as ruínas a testemunhar a perenidade de todas as civilizações que passaram pela Sicília.
Para quê insistir que este romance é uma obra-prima absoluta?
Mário Beja Santos