A propósito do 25 de Novembro e do seu São Jorge
Os Lusíadas constituem uma narrativa em que a maioria de nós se revê. Um dos episódios centrais da viagem épica da pequena esquadra que representava Portugal é o momento da passagem do Cabo das Tormentas, mais tarde da Boa Esperança, que representava a destruição da verdade oficial do fim do mundo e o diálogo com o Adamastor, o guarda do segredo que o mundo não acabava com o Oceano. Mas, sendo Os Lusíadas uma obra de exaltação patriótica, de elevação de um povo, Camões salienta que existe atrás de Vasco da Gama “alguém” mais forte e mais poderoso. Atribui a Deus e aos anjos o desaparecimento do Adamastor: «[…]Súbito d’ante os olhos se apartou; Desfez-se a nuvem negra […], Eu, levantando as mãos ao santo coro
Dos Anjos, que tão longe nos guiou/A Deus pedi que removesse os duros
Casos, que Adamastor contou futuros. »
Há sempre alguém atrás da narrativa oficial a mexer os cordelinhos. A Batalha de Aljubarrota e a subida ao poder de João de Avis são, na narrativa oficial portuguesa, a de Fernão Lopes, uma ação eminentemente nacional, dos comerciantes do Porto ao povo de Lisboa que aclama o Mestre nacional perante a ameaça de Castela. Na realidade, sabe-se que a oposição a Castela foi gerida pela Inglaterra, de acordo com os seus interesses estratégicos, que seriam prejudicados pela união peninsular. Foi a Inglaterra que forneceu uma força de arqueiros para combater e que organizou o casamento do rei português com Filipa de Lencastre, para esta ser a executora local da política inglesa. Existe uma narrativa portuguesa e uma outra inglesa para a crise de 1385. Na narrativa portuguesa os ingleses não existem! Também existe uma narrativa portuguesa e outra inglesa para a restauração da independência de 1640, mas os ingleses desaparecem da narrativa portuguesa, apesar de terem sido eles a organizar o Exército Português aconselhando especialistas como o conde De Lippe e o duque Schomberg, por exemplo. Narrativas inglesas e portuguesas ocorrem nas invasões francesas, designada pelos britânicos por Peninsular War e assim definida nos livros de história ingleses: The Peninsular War (1807–1814) was the military conflict fought in the Iberian Peninsula by Portugal, Spain and the United Kingdom against the invading and occupying forces of the First French Empire during the Napoleonic Wars.
Para as lutas liberais, para a participação na Conferência de Berlim, para a participação de Portugal na Grande Guerra, na Segunda Guerra, na guerra colonial existe sempre uma narrativa nacional e uma narrativa inglesa. No caso do 25 de Novembro de 1975, a narrativa inglesa é substituída pela americana.
A narrativa americana sobre o 25 de Novembro está resumida, entre outras fontes, no livro de Lindsey A. O’Rourke, Covert Regime Change: America’s Secret Cold War (Ithaca: Cornell University Press, 2018): “Os fatores relacionados com o alinhamento internacional são mais poderosos do que os relacionados com a política interna americana. Gerald Ford, difamado como um ingénuo, seguiu as mesmas linhas de Richard Nixon. […] No registo geral da ação dos EUA durante a Guerra Fria a intervenção em Portugal foi uma vitória notável. A decisão dos EUA de instruir a CIA a ajudar a financiar os socialistas e minar o PCP desempenhou um papel decisivo nos eventos. William McAffee, o diplomata que ajudou a examinar propostas de ação secreta, explicou sobre a ação em Portugal: Acreditava-se que o programa havia contribuído para o resultado favorável da eleição de Abril de 1975 e não havia publicidade sobre ele. Foi considerado um exemplo de quando e como uma operação secreta deveria ser executada.”
Em 25 de Novembro de 1975, Portugal constituía uma pedra anómala no tabuleiro de um jogo muito mais vasto, jogado pelos grandes atores internacionais num período de contenção da Guerra Fria entre os Estados Unidos e a União Soviética, que se traduziu nos acordos de Helsínquia no verão de 1975, mas onde se jogava a fidelidade e a obediência do flanco sul da NATO. A resistência dos gregos à ditadura dos coronéis ameaçava alterar o regime de submissão que vinha desde a Segunda Guerra, na Itália, o compromisso histórico entre a Democracia Cristã de Alfo Moro e o PCI de Berlinguer corria o risco da entrada de comunistas no governo de um grande país da NATO, o fim da fiel ditadura de Franco em Espanha também causava preocupações. Portugal era o elo mais fraco, o mau exemplo e aquele onde um golpe com argumento de “salvar” a democracia do comunismo era mais fácil de executar e de credibilizar perante a opinião pública internacional.
O 25 de Novembro resulta da decisão dos EUA atacarem o ponto fraco, que tinha a vantagem de estar a descolonizar Angola e estava dependente do auxílio americano para retirar os seus nacionais. Como é evidente nunca surge como razão para o 25 de Novembro a defesa da democracia, nem da liberdade, nem dos direitos do homem que amanhã serão invocados na Assembleia da República por coristas encoirados, sob o lema: Tudo pela Nação, nada contra a Nação! Serão proclamados, com voz embargada, valores e heróis. Ameaças e diabos. Milagres e mocadas em Rio Maior.
Em 1975, depois da Pérsia e da Jordânia corrigirem uma disputa fronteiriça, Kissinger encerrou o apoio aos EUA aos curdos numa ação que o Congresso classificou como de venda, justificando a decisão a um congressista: “Ação secreta não deve ser confundida com trabalho missionário.” Quanto ao golpe do Chile, em 1973, de acordo com uma transcrição desclassificada de uma reunião apenas duas semanas depois de Pinochet ter assumido o poder, Kissinger afirmou os diplomatas americanos que não deveriam colocar a questão das violações dos direitos humanos pelos golpistas, acrescentando: “Acho que devemos entender a nossa política: por mais desagradável que eles sejam, o governo [Pinochet] é melhor para nós do que Allende foi”.
Kissinger foi o mestre que conduziu o processo político em Portugal que conduziu ao 25 de Novembro e que, na narrativa oficial, restaurou a democracia em Portugal contra a ditadura comunista. O 25 de Novembro tem esta personagem de democrata exemplar como patrono! Como o seu São Jorge. É um facto.
Carlos Matos Gomes