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Leituras inextinguíveis (146): Cenas da geração em que triunfou a sociedade de consumo, os dourados anos de 1960

Fui professor de Sociologia do Consumo, o que me exigiu preparar conteúdos que levassem jovens, ainda antes do virar do século, a entender as ruturas operadas pela chegada da civilização das massas, o aparecimento da família nuclear, o novo papel da habitação e dos lazeres, a novidade do crédito e das vendas a prestações, a análise da função primordial da felicidade, e para não entediar mais o leitor dizer-lhe que os alunos manifestavam verdadeiramente interesse em procurar entender a génese da modernidade, as suas mitologias, o Olimpo dos deuses efémeros, a nova evidência das coisas da mesa, o primado do estatuto, uma cultura de massas urdida para entretenimento puro, para sentir medos e segurança, tempos em que perdera o sentido de falar em moda dominante, já que os grandes prescritores de opinião deixara de aspirar a ter uma permanência fixa no mercado. O emprego da etiqueta de novo é que rende: a nova direita, a nova esquerda, a nova economia, a nova cozinha…

Obviamente que oferecia aos meus alunos textos de autores que na época pesavam na formação e no entendimento desse mundo emergente no Pós-Guerra, desde figuras como Edgar Morin, Umberto Eco, Jean Baudrillard, Roland Barthes, e não excluía romancistas, caso de Elsa Triolet com o seu romance Rosas a Prestações, e procurava resumir As Coisas de Georges Perec que não tinha tradução em português, obra que recebera em 1965 o Prémio Renaudot, este um verdadeiro espelho da vida dos jovens adultos a viver na plenitude da sociedade de consumo. As Coisas funcionam como uma curta crónica, uma espécie de estudo de um casal ideal desejoso de absorver em ritmo veloz os benefícios oferecidos pelo mundo contemporâneo.

Georges Perec
Georges Perec

Perec introduz-nos no seu espaço habitacional, está cheio de vontade de nos saturar com a natureza dos materiais da casa, os quadros, os tapetes em salas de 7 metros por 3, cadeiras de couro, panejamentos e gravuras nas paredes, vitrinas pejadas de quinquilharia, um móvel com discos, a mesa do telefone, o quarto, com o chão atapetado, a cama e o armário, os cortinados, os candeeiros, as molduras com fotografias, e depois um pequeno escritório, mais gravuras, mais desenhos, mais fotografias. E temos o quotidiano deste jovem casal que interrompeu os estudos universitários, é um casal interessado em coisas da cultura e sempre à procura de levar uma vida confortável e livre. Vieram para conquistar Paris, obter estas coisas novas que parecem trazer um refinamento à existência, ainda não lhes passa pela cabeça que o entusiasmo em possuir pode ser uma forma de servidão; é um casal não conformista, leem jornais entre o centro e a esquerda, não têm gosto numa profissão que os prenda de manhã à noite, por isso se dedicam a inquéritos às relações-públicas interessam-se pela psicossociologia, estão sempre atentos à moda e o que ela pode oferecer como valor de mercado. É assim que eles se comportam no quotidiano, frequentam determinados cafés, partem para férias para lugares específicos, em grupo usam formas neutras ou não agressivas para ajuizar a arte, a política e a sociedade.

Sylvie e Jérôme irão enfastiar-se neste conforto mole, não querem arriscar a uma vida dura para ter muito dinheiro, Paris é uma tentação perpétua, gostam do charme do apartamento minúsculo (35 m2), saturado de objetos, frequentam lojas de traquitana e antiguidades, estão sempre carentes de novos signos para os comunicar junto dos grupos que frequentam, Perec aproveita o facto de estarem em voga os estudos de motivação, e o jovem casal propõe inquéritos em que se pergunta às pessoas o que é que pensam do café misturado com chicória e cevada, o queijo vendido em tubo, o que é que é mais importante no iogurte…

Assim chegam à saturação: da sobrecarga do consumo, do aborrecimento de fazerem inquéritos sobre coisas que não duram, fartam-se de filmes que não lhes dizem nada, sentem que se tinham instalado no provisório, e surge então a ideia de uma nova experiência, viver no estrangeiro, pensam primeiramente na Argélia, mas o estado de guerra não os entusiasma, acabam por aceitar a sugestão de alguém que lhes propõe a Tunísia, e para ali vão, ela ocupada com o meio escolar, ele à procura de uma oportunidade, cedo descobre que ali os padrões de consumo têm outro significado. Perec põe-nos a viver em Sfax, cujo porto e cidade europeia tinham sido destruídos durante a guerra, percorrem cheios de curiosidade as áreas antigas, a cidade europeia é mínima, ela está um tanto conformada a dar aulas, ele dececionado porque os estudos de motivação não existem na Tunísia. Sentem-se numa solidão total naquele mundo sem recordações, sem memória, tudo desértico com o deserto ali à porta. Decidem regressar ao mundo fascinante das coisas. E agora viajam de Marselha para Paris, nem se querem lembrar que dali partiram desiludidos, que descobriram que não há necessidades definitivas e até mesmo comprovaram as exigências implacáveis da moda.

Perec circunscreveu-se àquele mundo triunfante da sociedade de consumo dos anos 1960, então a moda era radical, uma moda substituía a outra, não será assim décadas depois, em que tudo estará na moda, o próprio conceito de estatuto social conhecerá novas abordagens, etc., etc. O que merece realce é que Perec faz esta crónica correndo-se de uma análise fria, trabalhando com uma exemplar economia de meios, jogando com a sátira, concebendo este casal modelo a querer esquivar-se do problema do trabalho duro, o tal que pode pagar consumos de outro nível. E o seu documento romanesco acaba por ser a soma da vida em sociedade tecnológica, recorrendo-se à vida em Paris, cheia de tentações e à Tunísia, um símbolo da rusticidade. Tudo levava a crer que o casal procurava na Tunísia abdicar de uma vida estéril, se bem que tranquila e confortável. Naquela década de 1960, estava a dar-se uma reviravolta nos quadros ideológicos, a própria direita aceitava pactuar com o estado social, desenhar políticas para alargar a burguesia, e alargando as classes médias iria revitalizar os mercados.

Capa de uma edição francesa, 1985
Capa de uma edição francesa, 1985

Perec foi um notável observador da consolidação da sociedade de consumo, escreveu cheio de humor, por vezes com uma ironia glacial, logo com as suas descrições em que alinha dos objetos daquela casa minúscula, lançando o jovem casal no torvelinho do mercado, passava-se de uma economia prudente no Pós-Guerra para a tentação de uma sociedade de massas e da multiplicação dos signos, era assim porque todos julgavam que só tinham a ganhar com a superioridade tecnológica e aderir aos mitos da modernidade.

As Coisas nunca foram editadas no mercado português, mas existe na internet uma edição em PDF, edição brasileira, para o leitor interessado.

Pode aceder ao livro neste link

 Mário Beja Santos

 

 

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