Ainda o V Centenário de Luís Vaz de Camões
Há cinco séculos, em 1524, na Casa dos Macedos de Santarém, contígua à igreja de Stº Estevão ou Milagre, nascia um menino a que foi dado o nome de Luís Vaz de Camões. Levado pelos pais, Ana de Sá Macedo e Simão Vaz de Camões, daqui para uma casa na rua de Sant`Ana, à Mouraria, em Lisboa, tal criança tornar-se-ia no maior Poeta de Portugal e Europa; da Epopeia Marítima dos Descobrimentos, através de Os Lusíadas; além de autor dos mais emocionantes poemas de Amor de todo o mundo: Eu cantarei d´Amor tão docemente/ Por uns termos em si tão concertados/ Que dois mil acidentes namorados/ Faça sentir ao peito que não sente. Trabalho de Hércules este do sentir amoroso num tempo hoje de ódios. Este soneto que assim começa com um apelo aos que não amam, ou amando não saibam como dizer, sem o dizer, aquilo que sentem a borboletear nos nervos e coração Um não sei quê que nasce não sei onde/ Vem não sei como, e dói não sei porquê, junto a uma série espantosa de outros mais conhecidos, redondilhas, éclogas, canções, autos e cartas, fizeram de Luís de Camões o mais alto cume artístico da Pátria portuguesa semelhante ou superior a outros grandes da Europa, Homero, Virgílio, Dante, Cervantes ou Shakespeare. Ainda hoje, Camões consegue algo que só os génios conseguem e não são todos, ser lido, estudado, republicado século após século, celebrado de outros grandes poetas, festejado em comemorações por todo o mundo, sim que a diáspora camoniana é grande, como este presente V Centenário do seu nascimento em Santarém em 1524 também será lembrado, dizem-no as notícias, ao que parece pelo respectivo Município um pouco mal desperto para a honra para ele de homenagear o nome mais glorioso de Portugal que outros já tiveram; com apoio dum certo livro sobre o filho de Ana de Macedo dalguns jornais, regionais e nacionais, Correio do Ribatejo, Mais Ribatejo, lembrado no DN etc; críticos e biógrafos dos mais ilustres de hoje; uma nobre Instituição Académica de Santarém, onde esse livro sobre Camões recém publicado foi festejado; e uma histórica editora que o lançou. Sim, há outras duas terras, Coimbra e Alenquer, que com Lisboa disputam esta subida honra ao sempre enobrecido Scabelicastro – in Os Lusíadas, III, 55 – , forma como o Poeta alude carinhosamente à terra da progenitora e dele, mas em nenhuma delas se diz que lá nasceu Ana de Macedo, a mãe do Poeta (Mariz, Severim, Faria e Sousa que primeiro o dá scalabitano), ou estava, em 1524, Simão Vaz de Camões, o pai (Gil Vicente, Braamcamp, Reis Brasil etc.) ou teve os amigos que antes que ninguém o saudaram e deram sepultura condigna.
No dia 1 de junho de 1880, nove dias antes daquele em que Lisboa, capital do reino, se preparava para festejar o Terceiro Centenário de Camões, com dezenas de carros alegóricos, filarmónicas, instituições, academias, representantes da Corte, Parlamento, jornalistas e uma Comissão de Imprensa de que fez parte um scalabitano ilustre e esquecido, apesar das peças de teatro que encenou na Capital e dos livros que legou à Biblioteca Camões da sua cidade, já falaremos dela, pois naquele dia 1 de junho a conhecida revista O Ocidente nº 59, um certo escritor jornalista e poeta famoso, além de, a meias com Junqueiro, ser autor da obra Viagem à Roda da Parvónia de grande êxito naquele tempo em que acabaram as tais, escrevia isto sobre o maior Poeta nacional nascido em Santarém, por acaso também a terra dele jornalista: A celebração do Terceiro Centenário de Camões enobrece a geração que soube inspirar-se no alto sentimento de justiça para honrar o nome dos que simbolizam a ideia de nacionalidade com as suas tradições gloriosas e ajuda a insuflar na consciência popular a porção de ideal que lhe falta neste momento histórico sem o qual os povos não passam de uns venerandos cadáveres. Nos conflitos e lutas de interesses da civilização actual a Epopeia de Camões é a nossa carta de admissão… sem a qual, no convívio das nações, o nosso lugar não seria à mesa do festim, seria à porta. Há-de chegar um dia em que os nossos templos se diluam; as nossas fortalezas se desmoronem; em que a evolução natural da matéria e do pensamento transformem o aspecto da civilização em que neste momento se agitam os nossos interesses. Às colunas talhadas em pedra sobreviverá todavia uma coisa que em vez de ser moldado em mármore ou batida em aço é forjada de ideal: Os Lusíadas! Guilherme de Azevedo.
No mesmo ano (1880) em que a Capital, em nome do país, homenageava Camões, Santarém terra dele e da progenitora, reunindo o melhor da inteligência local e regional, constituía em nome do Poeta do Povo e da Pátria, a Biblioteca Camões. Em 1878, dois anos antes do grande Centenário, a Câmara Municipal de Santarém iniciou a construção da Biblioteca Camões na rua das Figueiras para «despertar nos habitantes de Santarém o gosto, costume e necessidade de boa leitura», algo ainda ruim de tentar provam-no as dezenas de livrarias, desde aí, entretanto fechadas na cidade de Frei Luís de Sousa, um dos primeiros poetas a louvar Camões. Na reunião de Câmara de 23 de janeiro de 1879 o Presidente Julião Ferreira propôs a aquisição para esta nova biblioteca da edição ilustrada de O Lusíadas de Aristides Abranches e Duarte Santos. Um mês antes do Tricentenário « A Comissão Popular Scalabitana que se propõe festejar o Tricentenário de Camões, resolveu abrir a Biblioteca no dia do seu próprio festejo» (in Teresa Lopes Moreira, A Biblioteca Camões de Santarém, Mátrix Digital nº 9 novembro de 2021, donde foram extraídas a maior parte das notícias referentes a esta matéria neste artigo). A inauguração só teria lugar três dia depois a 13 de junho de 1880 com a presença do presidente da Câmara, Paulino Cunha e Silva, do Governador Civil, e toda a Comissão Popular de Santarém, liderada por Zeferino Brandão «que seguiu o préstito pelas ruas da cidade, indo à frente a Câmara Municipal com o seu estandarte a inaugurar a Biblioteca que ficou denominada Biblioteca Camões». Seguiram-se muitos discursos sendo o mais aplaudido o do reitor do Liceu de Santarém, Joaquim Maria da Silva.
A Comissão camoniana ofereceu então uma «coroa de bronze para perpetuar esta solenidade com a legenda – A Camões, Santarém reconhecida». Entretanto a dita placa desapareceu ou jaz cheia de verdete nalgum desvão camarário, ou pior. Alguns membros da Comissão Popular, com destaque para Pedro de Sousa Canavarro, iniciaram então a recolha de livros e objectos para a Biblioteca Camões conseguindo num primeiro momento a doação de 1239 volumes doados por 182 pessoas da região, do país e do estrangeiro, fora donativos em dinheiro que possibilitaram a aquisição de mais 118 títulos. A Biblioteca Camões foi a partir de então a Casa da Cultura de Santarém, da sua memória e alma histórica e centro de investigação, camoniano e não só (algo que espanta neste tempo digital de obras inéditas copiadas da internet), mas também local conspirativo do ideário republicano em particular depois do vexame do Ultimatum, que culminaria na revolução republicana do 5 de outubro de 1910, com ajuda de Luís Vaz de Camões, com barrete frígio e tudo!
Com altos e baixos, muitos livros distribuídos ao domicílio que não eram devolvidos, manuscritos preciosos desaparecidos etc. em dezembro de 1913 o bibliotecário José Pedroso foi substituído por Laurentino Veríssimo (tio do Prof. Joaquim Veríssimo Serrão e tio-avô do Prof. Vítor Serrão, ambos camonistas insignes), o qual, com uma dedicação ímpar, iria triplicar o número de títulos da Biblioteca Camões e o seu número de leitores. Em 11 de março de 1918, Sidónio Pais o controverso republicano, antes de ser assassinado na estação do Rossio, em Lisboa, deslocou-se a à Biblioteca Camões para homenagear o filho de Ana de Macedo dos Macedos de Santarém e, nem de propósito, visitar a exposição de pintura de António Saúde. Em 1920, Laurentino Veríssimo informou a edilidade de problemas de segurança do rico espólio e livros preciosos da Biblioteca Camões e degradação do respectivo edifício onde chovia (algo que hoje felizmente já não sucede nas bibliotecas camarárias desta cidade, uma delas em edifício alugado por uma conta calada). A Câmara acedeu, foram feitas obras de reparação e um Seguro do recheio. A morte, nas vésperas de Natal de 2021, do benemérito, grande historiador, colecionador de pintura e livros preciosos, muitos de Camões, Braamcamp Freire, que os doou à Câmara Municipal de Santarém e esta teve que os arrumar, levou à necessidade de utilizar o seu palácio na cidade, onde estivera Garrett, para reunir nele o espólio tanto da Biblioteca Camões como o agora recebido. Sucedeu esta união em 1926 de cerca de 15 mil volumes, milhares de manuscritos e primeiras edições, incunábulos sem preço, forais dalgumas terras deste concelho, quadros de grandes pintores, estátuas etc. e cerca de 3000 leitores assíduos à nova Biblioteca Braamcamp (coisa incrível que já não pode ver quem lá for hoje e era visível ainda há trinta anos). Laurentino Veríssimo continuou como director destas duas bibliotecas numa, acumulando ainda o cargo de director do recém inaugurado agora, sem lembrança nenhuma dele a quem se deve o esforço e carinho de reunir grande parte do seu recheio, Museu de S. João de Alporão. Quando morreu em 1936 (segundo as palavras de Teresa Lopes Moreira, in obra citada) «a Biblioteca Camões perdeu parte da sua autonomia sendo relegada para segundo plano por Manuel Vidal, dando mais visibilidade ao fundo Braamcamp Freire». E em 1949, a bem da nação, o mesmo Vidal anunciou que as duas bibliotecas juntas se passariam a chamar Biblioteca Municipal de Santarém.
Há poucos dias, a senhora Ministra da Cultura deste país, Dalila Rodrigues (nome histórico que lembra a fiel esposa de Sansão) cujo governo e o anterior anunciaram há mais de um ano que iriam celebrar Camões neste V Centenário, em 2024, algo muito visível sobremodo no Parlamento de lembrança do Poeta do Povo e da Pátria que lhes paga, pois a dita senhora visitou clandestina a Biblioteca Braamcamp de Santarém para anunciar umas coisas em nome de Camões, fora a Exposição que lá está da Camoniana da Biblioteca Braamcamp sem dúvida das mais notáveis do Mundo que não se sabe se ela terá visto. Os jornais noticiaram desta visita apenas que foi anunciado o arranjo dos caixilhos do edifício do séc. XVIII e a pintura da frontaria, onde podem estacionar quatro automóveis nos dias de maior concorrência (fora as visitas escolares dos miúdos encantados por faltarem às aulas) a visitar uma sala de meia dúzia de estantes, por não haver espaço para mais, insalubre, mal iluminada, desajustada aos tempos modernos, digitais, amplas e desafogadas, porém do tipo daquela do bispo de Viseu que diziam ser a biblioteca das onze mil virgens que eram os livros dela lidos pelo bom do prelado. Para uma capital de Distrito e a alma e memória da cidade, como dizia Laurentino Veríssimo, não está mal, nem vale a pena que os munícipes protestem por Torres Novas, Tomar etc. que concorrem com vantagem pela capitalidade deste Distrito se riam disto. Eu não me rio e até acho graça aos caixilhos. Tudo pela nação nada contra Camões.
MÁRIO RUI SILVESTRE
Excelente. Com o meu agradecimento pessoal, por tanto que me dá a saber, sobre tudo o que nos diz. E é muito.
Muito obrigado Manuel Sá pelo seu comentário. A Biblioteca, seja a de Alexandria na antiguidade; a de Borges na literatura ou a de Camões, noutro tempo, em Santarém, foram sempre a medida da civilização. Quando ardem ou são desprezadas algo de errado se passa nas sociedades.
Mário Rui Silvestre
Muito bom !
Grato pelo comentário. Santarém, quantos a estimam, aos Livros, Artes e Cultura, também lhe agradecem.
Mário Rui Silvestre