Ao que parece, todas as investigações feitas por José-Augusto França sobre Amadeo-Souza Cardoso mantém uma integral atualidade. Proveniente de uma família abastada de vinhateiros de Manhufe (concelho de Amarante), o jovem não se deu bem nos seus estudos em Lisboa, foi para Paris, aí despontou o seu génio, passo a passo, vamos vendo o artista na sua inquietação experimental, atento ao mundo incendiário das artes que se vivia então em Paris, aproxima-se do cubismo, vai descobrir as colagens, cedo rompe com qualquer espécie de academismo. Na primeira metade do século XX, será o artista português que irá às exposições fulgurantes, ao lado dos nomes mais sonantes das artes plásticas do seu tempo. Apaixona-se, eclode a guerra que rapidamente toma proporções de conflito gigantesco, Amadeo vem para Manhufe, é o seu período áureo, está permanentemente à frente do tempo, as suas exposições em Lisboa e no Porto dão azo a contestações, Amadeo chega a ser agredido no Porto. Em pleno fastígio, morre com a gripe espanhola. Durante anos, naquela onda dos sucessivos movimentos modernistas, fala-se dele, mas a sua obra não é mostrada, será Paulo Ferreira a fazer uma exposição em Paris que dará o pontapé de saída. E dizem os críticos que se está muito longe de se ter feito o reconhecimento do seu vanguardismo. Foi este génio meteórico que levou Mário Cláudio a escrever um romance tendencialmente biográfico, que veio a ser premiado com o Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores, em 1984.
É, na verdade, um belíssimo romance dotado de uma escrita rara, há para ali laivos de simbolismo, como se o romancista se sentisse obrigado a dar um perfume à época em que viveu Amadeo, por outro, a sua escrita parece ganhar plasticidade a ponto de querer ganhar coloração, a forma pictórica de Amadeo, é assim que arranca o seu romance:
“A Casa é uma teoria volumétrica por entre a vegetação, maior do que todo o Mundo, impossível de arrumar. Por torres e telhados se alevanta, paredes de cal alternando com panos de muralha, e um bestiário a habita, nela cirandando ou em torno lhe correndo, heráldicos bichos esguios, indistinto da paisagem. Na construção, que não obedece aos caracteres do meio, um pouco ao revés de certa convicção de sangue da família, a vida se concentra na cozinha que ele virá a pintar. É uma quadra enorme e enegrecida, trespassada de aromas que compõem uma história culinária remontando muito além do clã, ao horizonte de raças de loiro baço, olhos de verde sequíssimo, deuses que nas faldas do Marão apenas reclamam exíguos sacrifícios de bagas de arbustos, pequenos mamíferos amedrontados. Amadeo percorre a Casa a grande velocidade, na espécie de tontura que lhe dá a infância, ingénuo do destino a conferir ao fogo que a brincadeira não sabe extinguir.”
É biografia a várias vozes, parece que alguém, em Santa Eufrásia de Goivos anda a juntar o que ainda não se sabe sobre Amadeo, o que talvez ainda não se mostrou, esse alguém chama-se Papi, diz estar a reunir documentos recentes. Será assim ao longo do romance, histórias interpoladas, assistimos à vida agrícola de Manhufe, os vindimadores em atividade: “Tombavam os cachos nos cestos com um baque, e os que no fundo por outros eram sufocados deixavam desde logo um suco generoso e um rasto de grainhas. E prosseguia a vindima na profunda fadiga, na extensa letargia que se comunicava às colinas em volta, e as vides ficavam nuas. No lagar as uvas se despejavam, alguém lhes afazia a posição para a morte de que uma alma ligeira e vivíssima se levantaria.” Aparece alguém que consegue decifrar como Amadeo incuba uma fermentação genial, é o tio Francisco, será com ele que Amadeo ao longo da sua estada em Paris, mais se corresponderá. Papi é um alter ego de Mário Cláudio, é uma escrita em espelhos paralelos, a biografia vai nascendo, Amado em vilegiatura em Espinho, conversa com Manuel Laranjeira, Amadeo está em Lisboa em 1906, aqui nada o deslumbra, o furacão do génio só se desvendará em Paris, haverá ateliê no Boulevard Montparnasse, haverá estúrdia, depois o ateliê mítico na Cité Falguière, nº14, seguem-se outras mudanças, mas a Cité é o paradigma. “Era um amontoado de varandas de grades de ferro, estuques que a humidade devorava. Duas ou três chaminés compridíssimas mais disseminavam do que retinham o calor. As vidraças revestiam-se de fuligem e do pó dos blocos que se esculpiam. Por todo o lado se viam detritos, material plástico, plantas daninhas.” A Cité irá marcar a descoberta, Amadeo encontra-se em vários recantos com os seus amigos, é o caso de Select, ponto de encontro mítico. Tem crítico verrinosos, Mário de Sá-Carneiro insulta-o, pelo contrário Francis Smith reconhece-lhe a centelha, Amadeo dá-se bem com Eduardo Viana, irá depois aparecer Modigliani, vem necessitar de apoio, é acolhido no ateliê do jovem de Manhufe, aqui, em 1911 é a primeira exposição, de escultura, de Amedeo Modigliani. Surge Lúcia, jovem de dupla nacionalidade. “Lúcia é, em completa ingenuidade, o bosque a que se vai recobrar forças e fazer a aguada das pugnas existenciais, de onde se volta a largar olvidado, refrescado e sereno.” Paris é uma festa, ali aparecem os génios do bailado russo, é neste meio que Amadeo pinta, faz amigos como Robert e Sonia Delaunay, conviverão mais tarde em Portugal, não faltarão Eduardo Viana e até Almada Negreiros.
Estamos em 1913, é o ano do grande salto, Amadeo estará representado em The Armory Show, é nisto que chega a guerra, Amadeo e Lúcia estavam em Barcelona, onde ele conversa com Gaudí, depois o casal acolhe-se na casa de Manhufe, previa-se uma guerra curta, mas rapidamente as forças em confronto vivem atoladas em trincheiras.
O génio procede em disparos, sucedem-se as experiências, a exposição de Lisboa, a Liga Naval e no Porto, no salão do Jardim Passos Manuel, deixam os visitantes atónitos, alguém escreverá: “moço inteligente e audaz, em quem deploram detetar graves indícios de alucinação artísticas, criações do manicómio, exemplares teratológicos.” Não deixarão de ser cantados os encontros de Vila do Conde com os Delaunay e os sonhos que pareciam despontar. Em Portugal, viviam-se por inteiro as vicissitudes do primeiro modernismo, manifestações que Amadeo vê de longe, o seu relampejar pouco tem a ver com o que se passa na agitação destas pequenas elites, afinal o jovem de Manhufe já expusera no Salão dos Independentes, no Armory Show, na coletiva Der Sturm, de Berlim, houvera exposições em Colónia e Hamburgo, edições de álbum de desenhos. É nisto que vem o vírus da pneumónica.
E Mário Claúdio interroga-nos: “Porque morre? Ele lançara, no período de trinta anos e onze meses e treze dias, a órbitra completa da longa experiência. Explorar as vias que rasgara, numa disciplina fatal de burocrata, seria contradizer-se, homem que só no evento discernia os alicerces da natureza. Nesse vinte e sete de outubro de mil novecentos e dezoito, a vida que findara começara, como todas as que se extinguem, no reaver do palpitar definitivo das suas cores. De Amadeo, como de outros, poderemos dizer que oscilou do apetite à renúncia. Nem lume nem gelo o tiranizaram alguma vez, porque incólumes de intempéries ficam os homens missionários. Só os deuses, para quem a morte é jovem, pairam eternamente em regiões assim, o que será talvez conclusivo da genialidade do servo que convocaram.”
Sim, um belíssimo romance, Amadeo merecia-o.
Mário Beja Santos