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Leituras inextinguíveis (150): Vindimas lá para a região de Alenquer, vindimas bem perto do Corredor da Morte

José Brás, autor de Vindimas no Capim, obra premiada pela Associação Portuguesa de Escritores em 1985, honrou-me com o convite para apresentar o seu livro mais recente, Lavar dos Cestos, Liturgia de Vinhas e de Guerra, Chiado Books, 2024, belíssima obra memorial que tem a sua matriz no livro premiado, é o regresso de Filipe Bento, um camponês estremenho que penou as passas do Algarve em vários pontos do Sul da Guiné. Percebo perfeitamente como é obsidiante para este autor a originalidade da arquitetura da escrita, uma verdadeira sala de conversa que não dá uma só pausa ao leitor, uma escrita suficientemente elástica para estar sempre em intercalar vinhedos estremenhos com matas guineenses, rendeiros com sargentos vagomestres, o cenário ao fundo mete camponeses que são chamados a ir defender uma parcela do Império que está em plena convulsão.

José Brás
José Brás

É óbvio que Filipe Bento é o alter ego do José Brás, aquela dor sofrida dos trabalhos duríssimos da preparação dos solos para que haja uvas cruza-se na perfeição com aspetos pícaros e coloquiais onde não falta um sargento bandalho, um oficial prepotente, continua vincada na memória um professor abrutalhado, e há sempre aquele aparato tonificante de querer o leitor esclarecido sobre as operações dos vindimeiros e das suas alfaias agrícolas. Fica aqui um exemplo:

E o que é isso do pescaz e da cunha?

Um pescaz é um pedaço de ferro alongado, com sete ou oito centímetros de comprimento por um e meio de largura, mais ou menos, com uma cabeça ligeiramente desbordada, onde assentará a porrada de um martelo quando se for aplicar na enxada, pontiagudo para entrar melhor no olho, entre o cabo e ferro, atrás. A sua função é graduar o ângulo formado pela pá da enxada com o cabo. E esse ângulo deve ser mais aberto ou mais fechado, consoante o trabalho que se for realizar: cava, descava, sachola, abrir rego para feijão, covacho de batata de semear ou enterrar ceseirão, enterrar esterco, semear fava, tremoço ou tremocilha, ou grão preto ou branco, ou milho, ou trigo…

A cunha é isso mesmo, uma cunha. Um pedaço de ferro com as faces em triângulo agudo, com tantos centímetros de comprimento por tantos de largura na base, e que se espeta no cabo da enxada, de baixo para cima, na parte que fica dentro do olho, a fim de dar o aperto necessário para não se desencabar no trabalho.

Se vocês pensavam que uma enxada era assim uma coisa tão simples, só uma enxada, sem mais nada, desenganem-se! A profissão de ferreiro tinha muita ciência, meninos.

E tipos de enxada havia muitos!

Enxada de dois ferros, enxada de um ferro, enxada de dois bicos ou de terra seca, sachadeira, sachola…. E até se faziam sachos para as crianças. Diziam que era para brincar, punham-lhe um cabo à medida, habituava logo uma mão à albarda.”

É uma coloquialidade vibrante, sempre a saltar no tempo e no espaço, as reminiscências antigas fundidas com as da guerra, não falta uma linguagem increpada, o palavrão da caserna, os tons autoritários da instituição militar.

Temos, pois, o tu cá tu lá na sala da conversa, tudo parecer natural ou sincero no contexto da recordação, incluindo as cenas tremendas em que há tripas à mostra na explosão das carnes, no fragor das minas, o leitor é embrenhado na lembrança da humidade linfática daquele ar irrespirável, aquela atmosfera de ansiedade nas colunas de abastecimento a Buba ou a Gadamael Porto, trinta quilómetros para cada lado, a caçar minas, a chupar emboscadas, os camiões cavalgando troncos de árvores num prodígio de circo, correrias entre a vida e a morte mas que não faltassem comes e bebes, vão desfilando todos aqueles figurantes oriundos de todo o Portugal.

E há memórias que não se apagam, as cicatrizes da guerra estão por fechar, por exemplo aquele exato momento em que o nosso camarada foi atingido pelo raio da morte, foi o caso de Barcelos, que tanto penou até morrer, levou uma hora a esgotar-se, houve que lhe proibir os berros da dor, para tal enfiou-se-lhe na boca um rolo de ligaduras. O Barcelos seguia numa maca improvisada, toda a gente a pedir-lhe que aguentasse, aos poucos chegou a dormência, lá se ia mexendo dizendo que não queria morrer, queria ver o filho, depois o Barcelos casou-se, não houve forma de o convencer a ficar naquela coluna fantasmática que procurava a sua salvação.

Vindimas no Capim é uma obra de peso na literatura de guerra colonial. Também pelas descrições, pelos contrastes chocantes:

“Buba! Ao longe pareceu-nos um bairro de lata. O Prior Velho. O rio era a autoestrada do norte e o barco a carreira dos Claras a caminho de Lisboa. As barracas iam crescendo e já se viam braços no ar à beira do espelho da estrada, um amontoado de troncos a entrar na largura da rota, em forma de cais, e uma mancha a alargar-se, a mexer-se, a gritar.” Mas há também lembranças do rio Tejo:

“O rio sereno como o espelho, o negro do céu adivinhado na profundeza das águas, os canaviais das margens…

E aquele silêncio… quebrado apenas pela corrente na quilha da bateira, ou pelo salto de algum barbo brincalhão.

Aquela serenidade dava-lhe uma tristeza funda, uma saudade de não sei quê, como uma lembrança de outra vida, de um espaço aberto e infinito onde vivera já.

E à tarde, quando na casa do avô, sentado naquele barraco/lar sobre palafitas, sobre lodo e água construído, comendo fataça frita ou uma caldeirada de enguias mal-amanhadas, lhe vinha à lembrança aquele sonhar, agora menos concreto ainda, ainda mais difícil de agarrar, faziam-se-lhe os olhos ansiosos sob o prato, para além do prato e do barraco e do Tejo… e do mundo… e eram estrelas e azul fundo que lhe enchiam a alma.”

Romance biográfico, pois claro. Dá-nos a saber quer foi furriel responsável pela messe. Explora com o seu humor trágico a descrição de acidentes como a daquele padeiro que uma vez pediu para ir numa patrulha, apanhou um engenho de guerra, já ferrugento, era uma lata velha, procurou desmanchá-la, deu-se a explosão, ficou todo arranhado no peito e na barriga, perdeu uma mão, no lugar dela havia uma pasta de sangue, iniciou uma corrida doida, aos berros, em direção ao posto de socorros, alguém comentou que tinha tido sorte, o padeiro era canhoto, perdera a mão direita. Houve também uma emboscada e no rescaldo viu-se que um dos sargentos escorria sangue da cara, pingava para o camuflado, houve até quem dissesse que tinha um olho vazado, limpou-se-lhe o sangue e descobriu-se que não era nada, tinha sido uma bala que lhe passara pela sobrancelha de raspão, o sargento tivera sorte. É uma construção da escrita em que José Brás recorre frequentemente ao quente/frio, à comédia e ao drama, em que o uso do palavrão entra naturalmente na escrita, é totalmente assimilável, mais a mais se o leitor é antigo combatente.

Este romance é uma memória cheia de saltos como molas entre o Sul da Guiné e a Estremadura, há explosões de minas, emboscadas, tremendas flagelações em Mejo e Guileje, há naifadas na taberna, não falta a cena que pode redundar em tragédia que é um ataque de abelhas, como ele escreve:

“Um ataque de abelhas deixa a malta louca. Não há regras nem comando. Cada um defende-se como pode e a única coisa que pode ou saber é fugir à doida. O Lemos, apanhado na frente de bicha de pirilau, quando o pessoal largou a fugir para trás, nem viu do que era. Hesitou um segundo, meteu-se no carreiro errado depois, e perdeu-se.

As abelhas acharam-nos à mesma e, às voltas naquela selva virgem, a fugir do inimigo feroz, afastou-se em sentido contrário ao do resto do pelotão.

Só ao fim de duas horas, e quase por acaso, o encontrámos, deitado junto a um charco, despido, vomitado, cagado, inchado e meio inconsciente.

Contou mais tarde que era tantas as abelhas poisadas nele que, fugindo, foi tirando a roupa, peça a peça, e mergulhara na água da bolanha.

– O charco foi a tua sorte, pá! – dizia um camarada na messe no dia seguinte, com o gajo ainda combalido e de olhar absurdo.

– É! Sempre um tipo de sorte!”

Mas este romance é o quadro de uma época, não se esquece a miséria camponesa nem a gulodice dos maiorais nem a cupidez dos patrões, estão patentes as vigarices nas eleições no Estado Novo, o obscurantismo de vários matizes, está ali também presente um mundo que vai gradualmente desaparecendo quando caminhamos para o fim da guerra. Vindimas no Capim é o chamamento da terra, de entre as tabancas, ao pé do Corredor da Morte, junto a Guileje. E assim ganha compreensão a dedicatória do autor: “Àqueles que se estoiravam, eles próprios, por dentro e por fora, para que a terrar continuasse a parir e o solo a fecundá-la.”

Iniludivelmente uma das obras mais representativas desta literatura, a pedir reedição.

Mário Beja Santos

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