Logo no prefácio, António Valdemar, decano dos jornalistas portugueses e amigo do autor há mais de 60 anos, dá-nos conta da empolgante empreitada que o leitor tem pela frente:
“Estamos perante o testemunho de um descendente de judeus sefarditas, oriundos do Norte de África, quase todos de Marrocos, que se radicaram em Portugal. Uns ficaram no Algarve, outros foram para os Açores, outros optaram por Lisboa, o Porto e outras regiões do país. Tiveram ação preponderante no desenvolvimento económico, social e cultural. Introduziram um novo ciclo na transição do século XIX para o século XX e que se prolongou até aos nossos dias.
Um dos grandes méritos desta autobiografia reside na ausência de literatura. É uma descida às raízes, sem quaisquer limitações convencionais, para nos transmitir o que se acumulara nos espaços invisíveis do universo mais íntimo.” Um outro mérito, noto eu, é ele fazer-nos sentir a pulsação de uma vida, diga-se o que se disser, conseguida, no plano da sua intervenção cívica e no que pôde obter a favor da comunidade judaica aqui radicada e como médico que deixa um legado inesquecível.
António Valdemar vai mais longe e fala-nos nos vultos judaicos que graças à sanha nazi serviram a cultura e a ciência em Portugal, em breve escorço acompanhamos o itinerário de Joshua Ruah nascido em 1940, em pleno Chiado, a sua formação como médico, o seu papel como diretor da Comunidade Israelita de Lisboa, a sua comissão em Angola, na guerra colonial, como se empenhou na luta pela democracia – Um Judeu em Lisboa, Autobiografia, Editorial Caminho, 2022.
O seu poder narrativo, coloquial, toma conta de nós logo na descrição da infância, vamos sendo inseridos na história de uma família, temos a árvore da família, os seus relacionamentos, as suas lembranças antigas da Segunda Guerra Mundial; inevitavelmente, assoma o nome do seu avô Joshua Benoliel, um nome consagrado da fotografia portuguesa. “A minha mãe costumava dizer que só houve uma falha profissional pela qual o pai nunca se perdoou. A 1 de fevereiro de 1908, enquanto fotógrafo oficial, foi esperar a comitiva régia ao Terreiro do Paço. D. Carlos e a família real regressavam de uma estada em Vila Viçosa, onde costumavam passar uma temporada de caça no inverno. O meu avô fotografou o desembarque, voltou à tipoia onde um empregado lhe guardava o material e arrancou de seguida para o Palácio das Necessidades. Queria preparar tudo com tempo. Como se sabe, nem D. Carlos nem o filho, D. Luís Filipe, alguma vez chegaram ao palácio e o meu avô perdeu o momento do regicídio. A chapa feita no Cais das Colunas saiu na Ilustração Portugueza com a legenda ‘A cem passos da morte’. Obstinado, ainda descobriu onde estavam a fazer os caixões, convenceu os cangalheiros a trazer os esquifes para as ruas e registou o momento.”
Apresenta-nos a família e a sua origem marroquina, dá-nos conta do que é ser judeu em Lisboa, releva o nome de apelidos judeus que aqui chegaram em fuga do nazismo, como Halpern, Ridel, Katzan, Fradish, Cohan, Romano, Arons e outros. Percorre minuciosamente a baixa da sua infância, os liceus que frequentou, fala desinibidamente da vida no Bairro Alto, não falta a descrição das casas das meninas, por exemplo, no 142 na rua do Diário de Notícias, no 9 da Rua da Barroca e no 6 da Travessa da Água da Flor pagava-se 50 escudos. Já no 7 da Travessa das Salgadeiras os homens faziam filas longuíssimas para pagarem entre 25 tostões e 5 escudos por uma trabalhadora em fim de carreira, numa altura em que um bilhete de carro elétrico custava 8 tostões.”. E assim chegamos ao curso de medicina, ele que era filho de médico, Moisés Cagi Ruah. Começa a conviver com jovens oposicionistas, como Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira, Vítor Wengorovius e Isabel do Carmo. Casa aos 23 anos, ainda não concluíra o curso, e começa a sua carreira médica.
É de uma rara beleza a descrição que ele faz sobre o judaísmo e associa todo o seu pensamento à profissão que escolheu, diz claramente que manteve sempre uma grande proximidade com os doentes e colaboradores. Vai para Mafra e temos um alferes-médico em Angola, não esquece o que fez em Cazombo, no Alto Zambeze, no final de 1971 será evacuado por ter Hepatite A.
Lembra-nos como viveu o 25 de Abril e conta-nos as suas peripécias de relação com Mário Soares. Temo-lo agora como presidente da Comunidade Israelita de Lisboa, substituiu um presidente de longa data, figura conceituada, o professor Moisés Amzalak, como angariou dinheiro para uma organização que estava endividada, fala-nos da comunidade judaica de Belmonte, lamenta não ter conseguido pôr em prática a fundação em Lisboa de um Museu Judaico.
Nunca saberemos o que ele pensa do conflito israelo-palestiniano, sabe-se que tem devoção pelo Estado de Israel, conta-nos a história da sua intervenção em comissões sobre o ouro nazi em Portugal, acha que se trata de um balão vazio.
Foi médico de Álvaro Cunhal, a primeira vez que o líder comunista foi ao consultório de Joshua Ruah disse que havia uma coisa que os unia, era Abraão Israel Anahory, ex-diplomata e resistente comunista, que não gostava do Dr. Cunhal nem pintado. “Já o meu pai tinha tratado Álvaro Cunhal no Hospital do Desterro, era ela estudante. Um dia apareceu na consulta de urologia levado pela PIDE um estudante chamado Álvaro que estava preso na cadeia do Aljube. Na consulta, o meu pai ter-lhe-á dito para ter cuidado com a dieta. Para comer, por exemplo, peixe ou frango cozido. E ele, quando voltou para consulta de revisão, umas duas semanas depois, pediu ao meu pai o favor de que dissesse aos ‘pides’ para lhe mudarem a dieta, porque durante todo aquele tempo na cadeia só lhe tinham dado peixe e frango cozido para comer, por mais que ele dissesse que já estava bem. Era mais uma das torturas a que o submetiam.”
Vamos igualmente ficar a saber o percurso na maçonaria, dá-nos umas notas belíssimas da sua vida conjugal, a ascensão e queda de um projeto de hospital privado em que se envolveu, e as suas últimas páginas geram uma tremenda emoção, estamos frente a frente com um octogenário que diz não ter medo para morrer, mas que se sente atormentado com a perspetiva de começar a ser cortado às fatias. E diz mais:
“Há quem acredite que Deus lhes mostre o caminho. Outros preferem falar no universo e nas coisas que o cosmos nos diz. Como em tantas outras áreas da vida, acredito que o que importa realmente é saber ouvir. Em toda a minha existência tive noção de que a morte é uma coisa que temos de pensar e de aprender. E aprender é muito simples: faz o melhor que puderes e o mais rapidamente possível porque podes não ter tempo para acabar. Nunca como agora senti tão próxima a iminência da morte. Costumo dizer que sou saudável com várias doenças mortais. Talvez por isso, agarro-me à vida, Nunca deixei de sonhar com a construção de uma humanidade utopicamente perfeita.”
O mínimo que se pode dizer desta autobiografia é que este descendente de berberes, um judeu português, deixa um dos mais belos testemunhos autobiográficos que existem na literatura portuguesa.
Mário Beja Santos