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Leituras inextinguíveis (57): As horas más de um povo sitiado por ditadores, um povo acossado por pasquins

Com a concordância do jornal, criou-se uma secção com a seguinte especificidade: leituras do passado que não passam de moda, que ultrapassam por direito próprio a cultura do efémero, que roçam as dimensões do cânone da arquitetura, da estética e do estilo, tidas por obras-primas, mas gentilmente remetidas para as estantes, das bibliotecas públicas ou privadas. Livros ensinadores, tantas vezes, e injustamente, tratados como literatura de entretenimento.

Gabriel García Márquez
Gabriel García Márquez

A partir de 1955, um jornalista colombiano, Gabriel García Márquez entrou no mundo romanesco e começou a cativar as audiências tanto pelo estilo das suas obras como pelas temáticas onde se entremeavam situações culturais conhecidas com dimensões míticas, mágicas engenhosamente codificadas, enfim, uma arquitetura da escrita inovadora que irá desembocar num romance estrondoso, Cem Anos de Solidão, que pôs este sul-americano a caminho do Prémio Nobel da Literatura. Aqui se fala de uma obra de 1962, La Mala Hora, traduzido por Horas Más, Quetzal Editores, 2001. Numa atmosfera enevoada de uma ditadura musculada, num povoado não identificado, mas onde já há referências a Macondo (um umbigo do mundo onde decorrerá a dramaturgia de Cem Anos de Solidão), vão entrando e saindo da cena personagens que vivem sob a tensão de que há uns pasquins suscetíveis de acirrar ódios, desencadear crimes, sublinhar o que praticamente toda a gente conhece sobre vidas íntimas, negócios obscuros, vilanias.

Abre a tormentosa narrativa feita como um puzzle, o padre Ángel, prontamente apresentado: “Vestiu-se sem se lavar e sem rezar. Era alto, sanguíneo, com uma figura pacífica de boi manso, e movia-se como um boi, com gestos lentos e tristes. Depois de retificar a abotoadura da sotaina com a atenção languida dos dedos com que se verificam as cordas de uma harpa, retirou a tranca e abriu a porta do pátio.” Está na hora da missa, o padre dirigiu-se diretamente para a base da torre, agarra a corda do sino e fez soar os bronzes. Apareceu uma sua colaboradora, Trinidad, foi logo examinar as ratoeiras para os ratos, havia para ali um pequeno massacre. Entramos prontamente numa tragédia, há um pasquim a fazer sangue, César Montero indumentou-se, saiu de casa, foi então que viu o papel colado na porta da sua casa, dirigiu-se à morada de Pastor, o clarinetista, matou-o a tiros de espingarda. Entra em cena o alcaide, de boca inchada, há para ali um dente a torturá-lo, vai conversar com o juiz Arcadio. Chega a hora do padre Ángel emitir o seu parecer sobre o filme dessa noite, dá sinal de proibição, o filme chama-se “Tarzan e a Deusa Verde”, fita boa para todos, mas seria uma falta de consideração havendo um morto na terra.

Vamos ficar a conhecer melhor o juiz Arcadio, um macho gabarola, sofre de insuportáveis dores de cabeça, pergunta ao doutor Giraldo qual o melhor remédio, a resposta é breve: “Não ter bebido na véspera.”

Os pasquins envenenam tudo e todos, como numa peça de teatro ir-se-ão desvelando sentimentos, nem tudo o que parece é, saberemos pelo adiante que o Alcaide é um cúpido por fazer fortuna, iremos conhecer o clã Asís, uma estranha viúva e uns filhos bisonhos, também eles atingidos pelos pasquins, que há filhos fora do casamento, García Márquez não perde ocasião para cinzelar mais uma fantasmagoria:

“Adalberto Asís também tinha conhecido o desespero. Era um gigante bravio que em toda a sua vida tinha posto um colarinho de celuloide uma só vez, durante quinze minutos, para tirar aquele retrato que lhe sobrevivera na mesinha de cabeceira. Dizia-se dele que tinha assassinado naquele mesmo quarto um homem que encontrou deitado com a esposa e o tinha enterrado clandestinamente no pátio. A verdade era bem diferente: Adalberto Asís tinha matado com um tiro de espingarda um mico que o surpreendera a masturbar-se na trave do quarto, com os olhos postos na sua esposa enquanto esta mudava de roupa. Tinha morrido quarenta anos mais tarde sem ter podido retificar a lenda.”

O padre é procurado pelas senhoras católicas, há opiniões desencontradas, aproveitou para lhes lembrar que os sinos estavam rachados e as naves cheias de ratos, dá-lhes a entender que chegou a hora de partir e dar lugar a um pastor jovem empreendedor:

“Não quero que me aconteça o mesmo que ao manso Antonio Isabel del Santíssimo Sacramento del Altar Castañeda Y Montero, que informou o bispo de que na sua paróquia estava a cair uma chuva de pássaros mortos. O inquiridor enviado pelo bispo encontrou-o na praça da aldeia a brincar com as crianças aos polícias e ladrões.

As senhoras exprimiram a sua perplexidade.

– Quem era?

– O pároco que me sucedeu em Macondo – disse o padre Ángel. Tinha cem anos.”

O Alcaide mastiga analgésicos, entram em cena o sr. Carmichael, que trata dos negócios de uma riquíssima viúva, a viúva Montiel, há muitas conversas na barbearia, o barbeiro é perentório: “Já só restam no país os jornais do Governo e esses não entram neste estabelecimento enquanto eu for vivo.” É neste contexto que iremos ouvir falar em mudanças de população pobre para um terreno desocupado, tudo isto tem a ver com uma manhosice do Alcaide, como saberemos adiante. A atmosfera de ditadura vem à tona, o primeiro a ser perseguido é o dentista. Paira o clima de estado de sítio, mais adiante haverá recolher obrigatório. A conversa entre o Alcaide e César Montero é paradigmática da corrupção da Justiça. Há uma conversa fenomenal entre o padre Ángel e Trinidad, acaba em confissão, a pobre anda a ser assediada pelo tio.

A viúva de Montiel está farta de viver naquela terra selvagem, quer vender tudo o que tem, o sr. Carmichael faz-lhe ver que era preciso pôr ordem numa fortuna caótica, era impossível fazer partilhas e liquidar o imposto sucessório, ela responde: “Os meus filhos são felizes na Europa e não têm nada a fazer neste país de selvagens. Se o senhor quiser, faça um pacote com tudo o que se encontrar nesta casa e deite-os aos porcos.”

Avançamos para um desfecho trágico, é decretado o recolher obrigatório, andam rujas pelas ruas, civis armados, a partir das oito da noite a ninguém é permitido, a não ser com salvo conduto, nelas circular. Chegara um circo, em má hora, nele vinha uma mulher de nome Casandra, lia o destino pelas cartas, o Alcaide pede-lhe que deite as cartas e descubra quem é o autor dos pasquins. Resposta: “Toda a gente e ninguém.”

O Alcaide encontra um bode expiatório, um jovem que será torturado e enterrado no estabelecimento prisional em segredo, é recusada a presença do padre e do médico. Começam as prisões, descobrem-se armas. A ditadura não dorme, haverá execuções, gente desaparecida, a autoridade estabelecida não dorme. Tudo termina como começou, com o padre Ángel. “Vestiu-se sem se lavar e sem rezar. Tendo retificado a longa abotoadura da sotaina, calçou as botas gretadas pelo uso diário, cujas solas começavam a ganhar bocas.” Conversa com Mina, uma bordadeira que viera substituir Trinidad, fala-se dos tiroteios pela noite fora. E diz Mina: “Parece que ficaram doidos à procura de panfletos clandestinos. Dizem que levantaram o soalho da barbearia, por casualidade, e encontraram armas. A cadeia está cheia, mas dizem que os homens estão a ir para os montes para ser organizarem nas guerrilhas.” E assim termina esta insuperável, magnífica narrativa: “O padre Ángel deteve-se. Voltou para ela os seus olhos tristes, de um azul inocente. Mina também se deteve, com a caixa vazia debaixo do braço, e esboçou um sorriso nervoso, antes de acabar a frase.” Viviam-se más horas, toda aquela atenção dos pasquins punham os serviçais dos ditadores a praticar o terror.

Gabriel García Márquez avançava para o reconhecimento de grande escritor, famoso em todo o mundo, mesmo em países com ditaduras.

Mário Beja Santos

 

 

 

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