O Anjo Ancorado está muito longe de ser uma obra atípica no conjunto produtivo desse renovador da língua portuguesa que foi José Cardoso Pires. Editado pela Ulisseia, em 1958, o escritor revelava que já estava muito acima dos arquétipos do neorrealismo, via-se claramente que a sua escrita sofria indiretamente o influxo de obras norte-americanas de teor sociopolítico saídas do punho de John Steinbeck, Ernest Hemingway, Caldwell, Faulkner, e até Saroyan, Cardoso Pires nunca negou a sua atração pela short-story. De facto, as suas obras anteriores como Os Caminheiros e Outros Contos, mostram uma intensa observação da realidade social, um grande ecletismo nos pontos de vista, a sua técnica de narração, depois de Os Caminheiros deu um salto em Histórias de Amor.
Acontece que O Anjo Ancorado é uma história aparentemente simples, mas carga de encriptação que só muito mais tarde se pôde descodificar. Temos, por um lado, um homem quarentão e uma mulher bastante mais jovem, viajaram num bólide da época, um Talbot Lago, vão parar a uma aldeola, de nome São Romão, ali para os lados de Peniche.
Veja-se logo o contraste entre a abastança e a miséria. É neste cenário numa aldeia de pescadores que se vão avivando as conversas entre aquele casal urbano, João e Guida, ele empresário, ela professora, ele bebe uísque, fuma cachimbo, ela sofre de solidão, é um vulcão de dúvidas; tudo isto numa atmosfera de gente pobre, e a obra desenvolve-se entre interdependências a que não faltam fábulas, a caça de um velhote a um perdigoto, João apanha um mero na pesca submarina, uma jovem faz renda a ritmo acelerado, para vender esta a gente que vem de fora. Iremos sabendo o que aproxima e contrasta entre João e Guida; ele é de origem camponesa, filho de industriais, é possível que tenha andado no MUD juvenil, fez leituras revolucionárias; mortos os pais, ascendeu à categoria de proprietário não só de prédios como de hectares de terra; tornou-se cético, é um acomodado; Guida é diferente, formou-se em Letras, é ciosa da sua independência, possui uma capacidade filosofante que entra em diálogos de pingue-pongue com João.

Como iremos ver, uma escrita ardilosa, com cortinas de fumo a tapar a questão central: em meados de 1950, o Estado Novo está de pedra e cal, dois seres representativos de duas gerações parece que estão a discutir o sexo dos anjos, há para ali uma sensualidade retraída, Guida procura respostas, João parece resignado no jogo de deitar bolas fora, e aqui se acentua o paradoxo de uma conversa tão intelectual na dita atmosfera de miséria. Tudo camuflado, neste frente a frente de duas gerações, nos Anos de Chumbo, a liberdade e a democracia prosseguem inviáveis.
E há a escrita modelar de Cardoso Pires, logo no arranque:
“Num dia de abril de 1957, pela hora da tarde, apareceu em certa aldeola da costa um automóvel aberto, rápido como o pensamento.
Já alguém tinha dado por ele quando ainda vinha à distância, roncando pela estrada fora. De longe, como era vermelho, vermelho-vivo, lembrava uma chama de rastilho a romper no asfalto por entre mar e cabeços.
‘Que terra é aquela?’, perguntou uma rapariga que vinha lá dentro.
‘São Qualquer-Coisa’, respondeu-lhe o homem que a acompanhava. ‘São Rafael, parece-me’.
Era pessoa dos seus quarenta anos ou nem isso. Guiava de largo, cabeça para trás, mão pousada no volante. À parte o cabelo ralo e o olhar suave, todo ele, pele e gestos, tinham um aspeto terra à terra: dedos ossudos, pulsos chatos, unhas rasas, cor e modos de camponês – melhor: de descendente de camponês. Vinha de camisolão grosso, cachimbo nos dentes.
Afinal estão em São Romão, um punhado de gaiolas de adobe e falheiro, empoleiradas sobre o oceano e com ventos e gritos de aves marinhas a salpicarem-nas de cima.” Guida está deliciada com este meio, ele veio com vontade de praticar pesca submarina, trouxe espingarda, barbatanas, faca e escafandro e garrafa de ar comprimido. Guida espalha-lhe óleo pelo corpo. Aparece uma criança com uma amostra de renda de Peniche, propõe negócio, o garoto insiste, o cavalheiro da cidade dá-lhe dez escudos, o garoto afiança que daqui a um bocado traz a renda.
Há espaço para solilóquios, afinal homem e rapariga tinham-se visto duas, três vezes, na verdade não é o amor que os aproxima, é a necessidade de comunicarem, descreve-se um serão ali para os lados da Parede, tudo mortiço, ninguém desafia ninguém, nem há compromissos de ordem ideológica. Enquanto João vai para a pesca submarina, Guida sente a solidão naquele deserto sob as falésias. Lá no fundo do mar João avista um grande peixe. “Estava a dormir um sono pesado, se é que os peixes dormem. Os olhos grossos não buliam, cauda e barbatanas tudo quedo. Quem sabe se não estaria amodorrado, depois de ter comido qualquer outro grande peixe. Firmou o dedo no gatilho. O fabuloso filho do mar ia morrer sem ao menos ter dado combate ao inimigo que viera do reino da terra para aquele encontro necessário.”
O escritor fala de homem e rapariga nos seus passados, iremos perceber o percurso do João até se ter transformado num bem-pensante resignado. Temos depois aquele velho muito velho que pretende apanhar o perdigoto, e que depois o vende à Guida, João regressa com mero, já sonha em grelhar umas postas do magnífico peixe, o resto ficará em São Romão. Há momentos fabulosos como o combate entre o velho e o perdigoto. Guida perora, o velho, depois de ter vendido o perdigoto a Guida, enfia-se na taberna da aldeola, há uma jovem a fazer uma renda à lufa-lufa, na taberna sonha-se com eletricidade na aldeola, aumentaria o negócio com os turistas, até se montaria um telefone. É a vez de Guida emergir num solilóquio, teremos direito a saber o que vai na cabeça da rapariga. João pergunta à Guida se não está na hora de partir, há ali promessas de amizade, pressente-se que o vínculo entre os dois é mais do que ténue. O bólide, aos solavancos, mete-se pelo pinhal, Guida deita fora o perdigoto, aparece o velhote que o vai recuperar, Guida vitupera-o, o bólide entra de rompante na aldeola, o garoto acena com o embrulho da renda, João não afrouxa, o pequeno espalma-se por inteiro contra a parede, os familiares gritam àqueles selvagens. Dentro de casa, encostada ao rolo de bilros, a bordadeira chorava em silêncio, enquanto num automóvel a caminho de Lisboa, um deles pergunta ao outro que faz você amanhã, o outro responde que não sabe, o carro mordia a estrada, aos uivos nas curvas.
O que me surpreende nesta escrita é a sua modernidade, não perdeu frescura, é o sinal do classicismo, e agora à distância percebe-se como Cardoso Pires foi caustico com aquelas duas gerações entregues a si próprias, discutindo o sexo dos anjos, na profundeza dos Anos de Chumbo.
Há sérias razões para acreditar que José Cardoso Pires dizia a pé firme que de toda a sua obra este era o seu livro de estimação. Eu acredito, piamente.
Mário Beja Santos