Graças ao trabalho de Max Brod, um dos indefetíveis amigos de Kafka, falecido este, um dos gigantes da literatura mundial, O Processo foi editado em Berlim em 1935 (Kafka, se bem que checo, escreveu as suas obras-primas em alemão), tornou-se rapidamente num romance consagrado, meticulosamente estudado, os críticos tudo fizeram e tudo continuam a fazer para procurar descodificar a metáfora deste Josef K., gerente bancário, acusado de crime grave que jamais será apresentado pelos diferentes intervenientes, a ponto, depois de múltiplas peripécias, e passado um ano de circunlóquios estéreis, o acusado aceita ser imolado.
O mundo de Kafka é o nosso mundo, com a sua bateria de situações absurdas, mas também espelho de uma personalidade tumultuosa deste judeu checo de cultura vincadamente alemã, que deixou na generalidade da sua obra um sentido de desadaptação, de relações insipidas, de uma sexualidade recalcada. Em síntese, de que trata O Processo?
Uma bela manhã, entram no quarto de Josef K. dois homens, anunciam-lhe que está preso, o gerente bancário pergunta-lhes qual a razão, respondem-lhe que não há explicação a dar-lhe, o processo está a correr, o acusado será informado de tudo na devida altura. K. identifica-se, quem o vem buscar diz que os documentos não têm importância, o acusado é aconselhado a vestir de preto, será presente a um inspetor, debalde o acusado volta a perguntar o teor da acusação, a resposta é de que nada sabem a seu respeito, estão ali a cumprir ordens, finda a conversa, K. volta para o banco.

O leitor entra de algum modo no mundo íntimo de K., o apartamento onde vive, a personalidade da proprietária, os rapapés que ele anda a fazer à menina Burstner, não é propriamente amor, é uma aproximação à espera de melhores dias, esta chega a casa, K. dá-lhe conta da visita que tivera, em claro despropósito K. beija-a desalmadamente. E assim chegamos ao primeiro interrogatório, é um quase ambiente de tribunal, perguntam-lhe se ele é pintor da construção civil, ele repica que é gerente de um importante banco, Franz Kafka abre espaço para uma tirada tribunícia de K.:
“Não há dúvida nenhum que por detrás de todas as aparências desta justiça e, no meu caso, para lá da prisão do interrogatório de hoje, se encontra uma grande organização. Uma organização que não utiliza unicamente guardas venais, inspetores e juízes de instrução idiotas, mas que também sustenta juízes de elevada categoria. E, meus senhores, qual é o sentido desta grande organização? Não é outro senão de prender pessoas inocentes e de contra elas instruir um processo absurdo e, na maior parte das vezes, como no meu caso, improfícuo. Como é que numa conjuntura tão absurda se pode evitar que funcionários fiquem corruptos? É impossível; nem sequer o mais eminente juiz conseguiria escapar à ação dissolvente do meio. É por isso que os guardas procuram roubar as roupas aos presos, é por isso que os inspetores se introduzem abusivamente nas casas de cada um, é por isso que se prefere aviltar os inocentes em frente de assembleias inteiras a interrogá-los.”
E K. volta à sua vida, à sua rotina, esperava uma nova audiência, não aconteceu, voltou ao lugar onde se tinha realizado o primeiro interrogatório, tem uma longa conversa com a mulher de um oficial de diligências, tudo nublado, inconsequente, mas o oficial de diligências leva-o até às repartições da justiça, temos aqui um novo quadro do universo kafkiano, K. continua à procura da menina Burstner, terá uma conversa com uma amiga desta, a menina Montag, fica em aberto a possibilidade de K. voltar a falar com a menina Burstner, que se mantinha arredia. E entramos diretamente num outro quadro absurdo em que K. assiste a um verdugo a vergastar os dois homens que no início do romance anunciaram a K. que estava acusado.
Chega, entretanto, o tio de K., chama a atenção do sobrinho de que aquele processo pode ser uma desonra para a família, havia que encontrar um bom advogado, aquele processo não seria levado perante a justiça vulgar, ele ia levar K. a um reputado causídico, o dr. Huld, outro ambiente surreal, este está acamado, entregue a uma empregada que tudo comanda. O dr. Huld gaba-se que retira grandes vantagens das suas excelentes relações com o mundo da justiça, vai meditar na gravidade do processo de K. e a empregada, de nome Leni, revela-se conhecedora dos procedimentos da justiça e das intrujices a que é necessário recorrer, e assoma uma nova história de relação erótica, desta feita entre K. e Leni.

Nesta girândola de encontros e desencontros, enquanto K. pretende esclarecer-se das etapas do seu processo e de como se organiza a defesa, volta-se à interpretação do funcionamento das repartições do tribunal, do papel dos advogados, de como e porquê um acusado pode esperar a sentença durante anos, Leni é muito expedita a dissecar todos estas entorses da justiça. K. é procurado por um industrial, palavra puxa palavra, e já conhecedor que K. tem um processo, recomenda-lhe uma visita a um certo Titorelli, um pintor que sabe muito do funcionamento da justiça, K. irá visitar o dito pintor, nova sequência de absurdos, desta vez um coro de meninas que escutam a conversa entre K. e o pintor, este quer saber da inocência de K., as meninas fazem barulho e o pintor manda-as calar. E Kafka põe na boca este pintor que faz retratos a óleo de juízes um quadro espantoso do que deve ser uma absolvição: “Há três modalidades: a absolvição real, a absolvição permanente e a prorrogação. A absolvição real é a melhor, simplesmente não tenho a menor influência neste género de solução. Estou até convencido que ninguém a tem. Neste caso, o fator decisivo é, provavelmente, a inocência do acusado. Ora como o senhor está inocente ser-lhe-á realmente possível confiar unicamente na sua inculpabilidade. Neste caso não tem necessidade do meu auxílio nem de o de ninguém.” K. observa-lhe que ele entrara em contradição e o pintor procura aclarar o seu juízo em função de duas coisas diferentes, uma coisa é o que a lei diz, a outra ele aprendeu por experiência própria. “Na Lei, diz-se, por um lado, que o inocente é absolvido, mas, por outro, não se diz que os juízes podem ser influenciados. Não sei de nenhuma absolvição real; porém, de influências sei, e de muitas.” Vão agora falar das outras duas modalidades, e o pintor continua: “A absolvição aparente exige um esforço violento e temporário, ao passo que a prorrogação implica um esforço menor mas permanente. Se o senhor desejar esta modalidade, escrevo num papel uma atestação da sua inocência. Pego nela e irei mostrá-la a todos os juízes que conheço. Começarei por apresentá-la esta noite ao juiz que ando a pintar quando ele cá vier. Mostro-lhe a atestação, explico-lhe que o senhor está inocente, tomo a responsabilidade da sua inocência. Mas esta responsabilidade não é simplesmente uma aparência; pelo contrário, é qualquer coisa de efetivo e que impõe obrigações.”
Durante esta conversa K. descobre que só terá uma liberdade temporária, não há absolvições definitivas, a prorrogação é um pesadelo, mas tem a vantagem de tornar menos incerto o futuro do acusado. K. está exausto, compra uns quadros a Titorelli, seguir-se-á uma cena espantosa em casa do dr. Huld, K. vai conhecer o comerciante Block, o absurdo da justiça sobe à maior das alturas.
(continua)
Mário Beja Santos