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Leituras inextinguíveis (160): Quanto mais consumimos, mais queremos consumir, e vivemos num estado de abandono – 1

A Felicidade Paradoxal, ensaio sobre a sociedade do hiperconsumo, pelo filosofo Gilles Lipovetsky, Edições 70, 2007, revelou-se um trabalho de grande significado para a análise da sociedade contemporânea, isto a despeito de ter quase coincidido com uma alteração brusca do funcionamento do mercado, primeiro com a crise do subprime, falências em cadeia da economia norte-americana que acabaram por arrastar o sistema financeiro mundial para uma grave depressão, nada ficaria como dantes. Acresce que na década seguinte irrompeu outro fenómeno avassalador, a ascensão do iliberalismo e de novas tentações totalitárias, irromperam no mercado, e com uma certa conjugação, os BRICs, que possuem tendência para aumentar, ainda não sentimos as consequências de um quadro de nova competição, mas elas virão, impossível prever a sua dimensão.  Mas há aspetos da análise sobre a sociedade do hiperconsumo de Gilles Lipovetsky que mantêm franca atualidade. Trabalho denso, merecedor de uma apreciação circunstanciada, como se fará.

Gilles Lipovetsky
Gilles Lipovetsky

Para o autor, nascera uma nova modernidade pautada pelo incitamento perpétuo da procura em que a vida no presente se sobrepõe às expetativas do futuro histórico; entrara-se numa nova fase do capitalismo do consumo, o hiperconsumo, o ensaio debruça-se sobre o seu funcionamento e o impacto que passou a ter sob a vida das pessoas: passara-se de uma economia centrada na oferta a uma economia centrada na procura; esta nova era do capitalismo constrói-se estruturalmente em redor de dois atores preponderantes: o acionista de uma lado, o consumidor de outro, é esta a mutação da economia globalizada. Trabalhadores, sindicatos e Estado passaram para um segundo plano, têm vindo a ser suplantados pelo poderio dos mercados financeiros e dos mercados de consumo.

O espírito do consumo infiltra-se por todos os interstícios: na nossa relação com a família e religião, na política e no sindicalismo, na cultura no chamado tempo livre – é como se o consumo funcionasse como um império sem tempos mortos, mudou, um tanto drasticamente, o quadro das necessidades e dos desejos do consumidor: já não se encontra apenas ávido de bem-estar material, mas procura cada vez mais o conforto psíquico, a harmonia interior e o crescimento subjetivo, daí a revoada de livros e o florescimento das técnicas sobre desenvolvimento pessoal, os saberes orientais, as novas espiritualidades, as promessas de felicidade e sabedoria.

Por outro lado, o hiperconsumo aparece associado a um aumento da esperança de vida, chegamos a uma idade mais avançada, em melhor forma e muita gente beneficiando de melhores condições materiais. E Lipovetsky esboça um quadro do que foi a sociedade de consumo e como emerge o hiperconsumo, não deixando de referir que dos anos 1970 para os anos 1980 as democracias transitaram para uma nova era de mercantilização dos modos de vida.

Bem, vejamos o nascimento dos mercados de massa. Temos um primeiro ciclo da era do consumo por volta dos anos 1880 que terminou com a Segunda Guerra Mundial. A expansão da produção em grande escala deveu-se também aos princípios de organização científica do trabalho, o fordismo e o taylorismo, foram colocados imensos produtos ao alcance das massas; apareceram grandes marcas e produtos acondicionados e aconteceu um fenómeno inédito: o consumidor deixou de precisar de confiar no vendedor, rendeu-se à marca; a produção em massa fez surgir os grandes armazéns, com o seu estilo monumental, decorações luxuosas. A sociedade impregnou-se de palavras-chave: especialização, normalização, aumento do volume da produção, permanentes alterações do funcionamento da grande distribuição, as classes sociais com maior poder passaram a definir-se por um consumo de ostentação na habitação, no gozo das férias, na indumentária, tudo somado e multiplicado a diferenciar-se por um estatuto inalcançável pelas massas.

Falando do início do século XXI, Lipovestky diz que não encontra termos mais adequado que o de hiperconsumo para definir uma época em que os gastos já não têm por motor o desafio, a diferença, os confrontos simbólicos entre os homens; numa época em que as tradições, a religião ou a política são menos suscetíveis de produzir uma identidade central, o consumo encarrega-se cada vez mais de criar uma nova função identitária, superlativando os aspetos sensíveis e emocionais, graças à comunicação social e publicitária, e a fenómenos dinâmicos como a moda. Com o salto tecnológico no digital, são de atração obrigatória os objetos de consumo-comunicação, a começar pelo computador, o telemóvel e a modernização da cozinha onde impera o micro-ondas; a saúde mudou de look e de natureza, é uma preocupação omnipresente em quase todas as idades, já não vivemos dominados pela medicina curativa, queremos escapar ou antecipar as doenças, aceitamos o novo catálogo de comportamentos preventivos, com uma imensa variedade de procedimentos: vigiar a qualidade dos produtos, avaliar e limitar os riscos, retardar os efeitos da idade, fazer análises, tratar do corpo, estar atento à qualidade do sono, fugir da ansiedade, da depressão, da bulimia, da anorexia, dos riscos sexuais, etc.

Mas, não nos iludamos, este consumo também acelerou a dimensão hedonística, há uma ligação entre hiperconsumo e hedonismo, que consiste precisamente no facto de a mudança e a novidade se terem tornado princípio generalizado da economia material enquanto economia psíquica. Há um paradoxo entre vivermos numa cultura de urgência e do presente permanente e um certo estado de nostalgia, isto num quadro de leveza e insignificâncias, até de despreocupação fútil.

Lipovestky vai agora analisar a organização pós-fordiana da economia: esta não se caracteriza apenas por novas maneiras de consumir, mas também por novos modos de organização das atividades económicas, novas formas de produzir e de vender, de comunicar e distribuir – o sistema de oferta mudou de rosto, inevitavelmente a procura é também outra.

(continua)

Mário Beja Santos

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