Há histórias que sobrevivem ao tempo porque o silêncio não basta para apagá-las. Histórias de ausência, de dor e de resistência que, mesmo décadas depois, continuam a pulsar na memória das famílias. São cicatrizes que se herdam. A crónica que aqui partilho não é apenas um relato íntimo: é também um testemunho contra o esquecimento e contra a tentação cínica de branquear a ditadura salazarista.
O meu bisavô, Francisco Horta, antigo cortador no açougue de Abrantes, foi apanhado numa cilada em pleno trabalho. Submetido a um processo sumário, sem direito a defesa, acabou deportado para África. Nunca mais houve notícias. O Estado calou-se, Salazar calou-se num silêncio ensurdecedor, e a família foi condenada a viver com uma ausência irreparável.

De um dia para o outro, a minha bisavó Antónia de Jesus Godinho viu-se sozinha com cerca de oito filhos para criar. Transformou a dor em sobrevivência, vendendo peixe na «praça» e carregando tabuleiros pelas ruas mais a filha Cristina. Assim alimentava os filhos, sustentando, com dignidade silenciosa, uma família que o regime havia desmembrado.
Uma das filhas de Francisco, Joaquina Horta, que viria a adoptar o nome artístico de «Dulce», chegou a viver com o famoso empresário Ramiro Bento Leão. Nos anos 1930, vivia em Lisboa com a sua mãe e também com a minha mãe, Margarida, que na altura ainda era uma criança. Foi nessa moradia da Luciano Cordeiro que se escreveram imensas cartas dirigidas directamente ao ditador. Eram súplicas: notícias, um sinal de vida, a possibilidade de um encontro. Mas as cartas nunca tiveram resposta. Salazar impôs à família não apenas a ausência de Francisco, mas também a impossibilidade de luto.

Recorda-se também aqui o drama de outra família atingida pela violência do regime através da figura do general Marques Godinho, parente da minha bisavó Antónia de Jesus Godinho. Na sequência da tentativa de pronunciamento de 21 de Julho de 1947, foi detido e acabou entretanto no Presídio Militar da Trafaria. Ali, a doença cardíaca de que já padecia agravou-se rapidamente e, sem cuidados adequados, acabaria por morrer no Hospital Militar da Estrela, a 24 de Dezembro desse mesmo ano.
A reacção da família do General foi de coragem: processou o ministro da Guerra, Fernando Santos Costa, acusando-o de homicídio voluntário. A defesa esteve a cargo do advogado Adriano Moreira. Contudo, em lugar de justiça, a resposta foi mais repressão: alguns familiares foram presos e até o próprio advogado acabaria encarcerado. Como recorda o blogue Cidadãos Por Abrantes, só relendo Portugal Amordaçado, de Mário Soares, é possível compreender quem esteve por detrás da morte do general e descortinar a teia de cumplicidades e violências que o regime tudo fez para ocultar.

Estas memórias não pertencem apenas às respectivas famílias: pertencem a todos os que recusam a mentira histórica. Entre o desaparecimento do meu bisavô, a luta sobre-humana da minha bisavó e a morte do general Marques Godinho, parente da minha bisavó, ecoa uma verdade: o salazarismo não trouxe ordem nem virtude. Trouxe medo, silêncio e famílias destroçadas.
E é por isso que causa indignação ouvir ainda hoje vozes que, com ignorância ou cinismo, exaltam Salazar como se fosse um exemplo de siso e rectidão. Quem o idolatra demonstra desprezo pela dignidade humana e desprezo pelas vítimas, tentando transformar em virtude aquilo que foi, na realidade, iniquidade, censura e dor.

A memória é a nossa forma de resistência. Recordar é erguer um muro contra o esquecimento e contra as tentativas de branquear a história. A história da minha família é apenas uma entre milhares, claro. Mas é suficiente para que se compreenda que, quando alguém elogia Salazar, não é de ordem que fala: é da indiferença perante o sofrimento humano.
José Luz
(Constância)
PS – Não adopto o dito AOLP
Estou a ler uma biografia de Salazar escrita por Tom Gallagher, suponho jornalista do The Guardian. O que achei piada é o que está escrito na capa O DITADOR QUE SE RECUSA A MORRER. +E que por tudo e por nada se lembram de falar de Salazar!!!!!!!!!!!
Não aprovamos coisas assim, mas se comunista fosse o Salazar teria feito coisas muito piores. O que fizeram os desterrados e asilados quando chegaram ao poder? Imediatamente perdemos milhões de quilometros quadrados do nosso território e deixamos os nativos africanos numa guerra civil com milhões de mortos.
Nota da redação / resposta
O comentário acima mistura factos e interpretações de forma simplista. Importa esclarecer:
– O fim do império colonial português não foi uma decisão exclusiva de um partido ou de uma ideologia, mas o resultado inevitável de décadas de luta de libertação em Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, apoiada pela ONU e pela comunidade internacional.
– A ditadura de Salazar e Caetano arrastou Portugal para uma guerra colonial de 13 anos, com milhares de mortos e feridos e um enorme peso económico e social.
– As guerras civis em alguns países africanos após a independência não foram consequência direta da descolonização portuguesa, mas de contextos internos complexos e da intervenção das potências da Guerra Fria (EUA, URSS, África do Sul do apartheid, etc.).
– É incorreto falar em “milhões de mortos” por ação da descolonização portuguesa. Esses conflitos devem ser analisados no quadro mais vasto da história africana e internacional do século XX.
Recordar estes factos é essencial para evitar visões saudosistas que tentam branquear a realidade da ditadura e do colonialismo.
A maior infelicidade foi termos politicos tacanhos, conservadores, com pouca visão de futuro no sentido de juntar-se à Europa na democratização e na descolonização….Ou , quem sabe , a ausência do exercito alemão a ocupar Portugal …Claro que Salazar foi astuto , jogou com ambos os lados e até fez negócios com ambos os contendores, como o volfrâmio, por ex …Mas após a guerra ficou tudo na mesma como a lesma, nenhuma abertura á democracia.. Quanto a Africa deveriam ter-se reunido com os movimentos de libertação em tempo oportuno para acautelar a vida de tantos portugueses , muitos dos quais nasceram e sempre viveram lá… Em vez disso insistiram no Portugal multicultural e multiracial que SÓ existiu no papel !! Porque o negro nativo vivia na sanzala , na sua maioria , enquanto o branco vivia nas cidades e vilas ….Não era o apartheid sul-africano , mas havia separação na maior parte dos casos . O racismo não era um facto muito evidente mas estava lá, e fazia mossa . Os próprios soldados da “Metrópole” sentiam-no bem na pele , eram considerados brancos de segunda e tratados com desprezo ….E no entanto estavam lá para defender os brancos de primeira !!!!! No Uige , havia um colonato ( Vale do Loge) onde a maioria eram presos políticos da Madeira, Açores, Cabo Verde, S.Tomé , etc . Faziam uma vida normal , sem muros , mas cumpriam pena , não podiam regressar ás suas terras ….Tudo isto seria evitado se Portugal seguisse o rumo da História, se imitasse os outros paises europeus , se democratizasse , se abrisse as mentes retrógradas.