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Leituras Inextinguíveis (184): Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros

O Triunfo dos Porcos (Animal Farm), de George Orwell, Perspetivas e Realidades, 1976, mas com sucessivas edições, caso de Publicações Dom Quixote, é porventura a sátira política mais explosiva, que mais danos ideológicos provocou, dos anos 1940 em diante. O quadro histórico da ascensão do bolchevismo, as lutas de Estaline e Trotsky, o terror estalinista, os ziguezagues das alianças, as purgas, as execuções, o despotismo de classe, plasmam-se na vida de uma quinta, a Quinta Manor, propriedade do Sr. Jones, um negligente agricultor e bebedolas, onde os animais vão sacudir o jugo. Quem capitaneia a rebelião é o velho Major, um porco branco que havia sido premiado, tivera um sonho e quis transmiti-lo aos muares, vacas, galinhas, carneiros e cabras, aves de todo o porte, enfim, o pleno da bicharada ali existente. O porco Major fez uma prédica exaltante, incitou os animais à revolta: “O homem é a única criatura que lhe consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é muito fraco para puxar o arado e não corre o bastante para caçar coelhos. Pois, apesar de tudo isto, é o senhor de todos os animais. Manda-os trabalhar e do produto desse trabalho dá-lhes só o mínimo necessário para não morrerem de fome. O nosso trabalho lavra a terra, o nosso estrume fertiliza-a e, no fim de tudo, apenas somos donos da nossa pele.” Gera-se o tumulto, define-se quem são os camaradas, até podem ser as criaturas selvagens como ratos e coelhos. Tudo o que anda com dois pés passa a ser inimigo. No sonho do porco Major aparecera uma cantiga, “Animais de Inglaterra” eles iriam conhecer a liberdade, a riqueza, um futuro dourado. O porco Major morreu e dois outros porcos, Snowball e Napoleão passaram à liderança, o sentimento da rebelião cresce, ainda há hesitações dos animais que acreditam na Montanha de Açúcar, qualquer coisa como a esperança de uma vida feliz depois da morte. A rebelião será bem-sucedida, o Sr. Jones e a mulher fogem, da Quinta Manor passa a falar-se em Quinta dos Animais, os revoltosos vitoriosos instituem mandamentos.

George Orwell (1903-1950)
George Orwell (1903-1950)

E começa a saga da reconversão, os animais trabalham em prol do que é seu, tratam-se por camaradas. Os porcos passaram a ter um estatuto especial, eram mais inteligentes, tiveram direito a fazer quartel-general, procedeu-se à alfabetização, com resultados altamente complexos, há um porco responsável pela propaganda, o famigerado Squealer é o agente da propaganda porcina. Os proprietários das redondezas tentam esmagar os revoltosos, estes resistem heroicamente, com o Snowball à frente. Na Quinta dos Animais ganhou-se a Batalha da Abegoaria. Forjados pela luta vitoriosa, os animais vencem as contrariedades, Snowball pensa em inovações e melhoramentos, propõe uma mudança radical, a construção de um moinho de vento. Napoleão dá-lhe luta, sugere outra consigna, a batalha da produção. “A opinião de Napoleão era de que os animais deviam ter armas e treinar-se no seu uso. Teimava Snowball que melhor seria mandar pombos, cada vez mais numerosos, para provocar a revolta entre os animais das outras quintas. De um lado argumentava-se que aqueles que não se podiam defender eram conquistados; sustentava-se do outro que, se a rebelião rebentasse por todos os lados, não teriam necessidade de se defender.”

Napoleão faz-se cercar de autênticos mastins, eles perseguem Snowball, que é obrigado a fugir, Napoleão ocupa agora o lugar do falecido porco Major. Dentro desta rábula genialmente urdida por Orwell, o leitor avisado já se apercebeu que Trotsky está em fuga, Estaline impôs-se. Para surpresa dos animais, Napoleão deu o dito por não dito, o moinho de vento iria ser construído. Nascera o culto da personalidade, apagou-se as façanhas de Trotsky, surgiram as máximas do trabalho intensivo, a planificação tornou-se um deus. “Todos os animais se esforçavam como escravos, mas eram felizes. Não se queixavam do sacrifício que estavam a fazer porque sabiam que tudo era em seu benefício e dos seus semelhantes que depois viessem, e não em proveito daquele grupo de inúteis gatunos seres humanos.”

Napoleão anunciou que a Quinta dos Animais iria relacionar-se com as quintas vizinhas, não no sentido comercial, mas para obter certos materiais de reconhecida urgência, o porco Squealer logo andou a explicar que não se devia temer a vinda dos humanos, haveria um intermediário entre a quinta e o mundo exterior. A vida dos porcos, o cérebro da quinta, ganhava requintes, ocuparam a casa da quinta e nela se instalaram. Aos contestatários respondia-se sempre: “Napoleão tem sempre razão!”. Se as coisas corriam mal, a propaganda dizia que eram maldades de Snowball, o traidor vinha pela calada e destruía o trabalho. Dava-se prémio a quem o capturasse vivo.

O ano agrícola fora trágico, houve que reduzir a ração dos animais, era vital ocultar esse facto ao mundo exterior, houve que produzir muito mais, as galinhas deviam entregar os seus ovos, revoltaram-se, Napoleão atuou com vigor e rapidez, mandou que não fossem dadas rações às galinhas, as galinhas capitularam-se, nove morreram, entretanto, não se sabia bem porquê.

Começou o tempo das confissões públicas, havia inimigos implacáveis dentro da quinta, quatro porcos que tinham protestado contra a abolição das assembleias aos domingos confessaram haver tido relações secretas com Snowball. Disseram ainda que Snowball lhes confessara que era agente secreto de Jones já há anos. Quando acabaram a confissão, os cães cortaram-lhes a garganta. Napoleão perguntou se não haveria qualquer outro animal que tivesse alguma coisa a confessar. As três galinhas que tinham tentado fazer uma revolta por causa dos ovos declararam então que Snowball lhes aparecera num sonho e as intimara a desobedecer às ordens de Napoleão. Também foram logo mortas. Entrara-se numa época de intensas purgas, de confissões sem pés nem cabeça. Napoleão decidiu abolir o hino “Animais de Inglaterra”, a explicação era simples, em tal canção expressava-se o desejo de uma melhor sociedade nos dias futuros. Essa sociedade já estava estabelecida, a canção já não tinha razão de existir.

Os animais pareciam completamente esquecidos dos mandamentos instituídos tal como “Nenhum animal matará outro animal”. Napoleão já não era tratado pelo simples nome de Napoleão, agora era o pai de todos os animais, o terror da humanidade, o protetor do rebanho dos carneiros. Tornou-se hábito atribuir a Napoleão todos os empreendimentos bem-sucedidos.

Ora este pai de todos os animais envolveu-se em complicadas negociações com proprietários de quintas vizinhas, um tal Frederick enganou muito bem Napoleão e numa manhã este Frederick entrou na quinta, com fogo devastador, tudo parecia perdido, os homens de Frederick destruíram o moinho, os animais resistiram, a despeito de tanta devastação.

A vida na quinta mudara radicalmente, cultivava-se cevada e fazia-se cerveja, falava-se em novas leis para a reforma, mas a vida era duríssima, os animais sofriam privações, houve fazer novas negociações, desta vez com os inimigos de Frederick. Napoleão passeava-se levando um chicote, um dos mandamentos apareceu modificado: “Todos os animais são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. Os visitantes vieram à quinta fazer novos negócios. Pelas frechas das janelas da sala, os animais acompanhavam atónitos a transformação que se tinha operado na cara dos porcos: “Os que se encontravam lá fora olhavam do porco para o homem, do homem para o porco e novamente do porco para o homem, mas era já impossível distinguir uns dos outros.”

O leitor pode imaginar a discussão tremenda que deu esta sátira política, só um talentoso escritor como George Orwell, antigo combatente nas Brigadas Internacionais na Guerra Civil de Espanha, podia dizer como ele escreveu: “Todas as linhas do trabalho erudito que escrevi desde 1936 foram escritas, direta ou indiretamente, contra o totalitarismo e em defesa do socialismo democrático, tal como eu o compreendo.”

De leitura obrigatória.

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