Num tempo em que o ruído comercial do Halloween tende a sobrepor-se à memória espiritual, o Dia de Todos-os-Santos convida-nos a olhar mais fundo — para a herança da fé, coragem e santidade que molda séculos de cultura cristã. É um dia de luz e de lembrança, em que a Igreja celebra não o medo, mas a esperança. E é também nesta ocasião que ganha particular significado a recordação dos mártires Generoso e Fiel, cujas relíquias repousam silenciosamente na Igreja Matriz de Constância, da invocação de Nossa Senhora dos Mártires, desde a sagração do seu altar-mor, em 1954.

A Sagração do Altar-mor e a visita episcopal
No ano de 1954 a vila de Constância viveu um dos momentos mais solenes da sua história religiosa recente: a sagração do novo altar-mor da Igreja Matriz, cerimónia que coincidiu com a visita pastoral de D. Agostinho de Moura, então bispo da diocese (que o autor desta crónica conheceu pessoalmente bem como ao seu secretário, o cónego Sousa do jornal «A Voz de Mação»). O evento integrou-se nas Festas da Páscoa e revestiu-se de grande significado, quer espiritual, quer comunitário. O programa das Festas da Páscoa em Constância, impresso pela Gráfica Abrantina e datado de abril de 1954, descreve com detalhe a sequência das celebrações. No Domingo de Páscoa realizaram-se missas rezadas e cantadas, bem como a recepção solene do prelado. Já na Segunda-feira de Páscoa, às nove horas, teve lugar a Sagração do Altar-mor, seguida da missa, crisma e demais cerimónias próprias da visita pastoral. À tarde, a tradicional Procissão de Nossa Senhora da Boa Viagem percorreu os rios que abraçam a vila, encerrando com a bênção do Santíssimo Sacramento. A circular paroquial assinada simplesmente por ‘O Pároco’, esclarece que a festividade teria um ‘esplendor especial’, pois coincidiria com o Ano Mariano e a presença do Bispo, destacando-se, em particular, a sagração da mesa do altar-mor, revestida de mármore. Foi nessa ocasião — conforme tradição oral e registos do cronista local Joaquim dos Mártires Neto Coimbra — que foram depositadas no altar relíquias de dois mártires: São Generoso e São Fiel.

As Relíquias: hipóteses sobre São Generoso e São Fiel
Até hoje, não foi possível determinar com total certeza a identidade hagiográfica desses dois mártires. A designação ‘Generoso‘ e ‘Fiel‘ pode corresponder a santos de nome Generosus e Fidelis, venerados em diferentes regiões da cristandade. São Generoso (ou Generosus) aparece no Martirológio Romano em várias datas e locais: há referência a um Sanctus Generosus Martyr, festejado a 17 de Julho, e a um Sanctus Generosus venerado em Tivoli, Itália. Em alguns casos, é identificado como soldado romano convertido à fé cristã, martirizado nos primeiros séculos da Igreja. São Fiel (ou Fidelis) poderá corresponder a São Fiel de Sigmaringa, mártir capuchinho do século XVII, canonizado em 1746, protector dos missionários e advogado da fé católica contra o erro. Contudo, é igualmente possível que se trate de um dos antigos mártires de nome Fidelis (ou Fidelis de Como), venerados em catacumbas romanas e cujas relíquias, a partir do século XIX, foram distribuídas a várias paróquias por autorização episcopal. Sem documentação adicional, as hipóteses mantêm-se abertas: as relíquias poderão provir de santos das catacumbas, identificados por nomes latinos simbólicos — Generosus (‘nobre’, ‘abnegado’) e Fidelis (‘fiel’, ‘constante na fé’) — que, traduzidos, deram origem às designações ‘Generoso’ e ‘Fiel’. Também é possível que tenham sido enviadas por intermédio da cúria diocesana ou de congregações religiosas, em resposta ao costume de selar novos altares com relíquias autênticas.
Significado e memória
A colocação das relíquias de São Generoso e São Fiel no altar-mor da Igreja Matriz de Constância, em 1954, simbolizou a ligação entre a comunidade local e a Igreja universal. Representa, ainda hoje, a presença dos mártires — testemunhas da fé — no coração da vida litúrgica constanciense. Não se conhecem publicamente os documentos que possam revelar a proveniência exacta das relíquias, e a memória destes santos ainda perdura na tradição oral, guardando um misto de mistério e veneração. Talvez um dia, através de novas pesquisas em arquivos diocesanos, romanos ou paroquiais, seja possível identificar com maior precisão quem foram estes Generoso e Fiel, cujos nomes — tão simbólicos da virtude cristã — possam continuar a inspirar a fé desta comunidade ribeirinha.

Tradição e pertença: um apelo à comunidade
Num tempo em que a mobilidade aproxima distâncias mas afasta vizinhos, é cada vez mais raro ver a comunidade paroquial reunir-se como outrora — unida pela fé e pelas tradições que davam ritmo à vida local. Muitos fiéis chegam de carro, vindos de outras terras, e as celebrações, embora vivas, já não reflectem o rosto da própria vila. Urge, por isso, redescobrir o valor das raízes e dos costumes locais, das procissões antigas, dos cânticos, das festas e das devoções (o mês de Maio, do Sagrado Coração de Jesus, etc) que fizeram de Constância uma comunidade de fé partilhada. Sem essa ligação à terra e à memória, a Igreja corre o risco de se tornar apenas um lugar de passagem, e não um lar espiritual. Que a lembrança dos mártires Generoso e Fiel nos inspire a reunir os corações dispersos e a renovar a vida paroquial com o mesmo fervor dos que nos precederam a nós.
Bibliografia e Fontes Consultadas
- Programa das Festas da Páscoa em Constância – 1954. Gráfica Abrantina, Abrantes.
- Cronista local Joaquim dos Mártires Neto Coimbra. Apontamentos orais e escritos sobre a história religiosa de Constância.
- Martirológio Romano. Edição latina e traduções diversas.
- Catholic Online / Saints & Angels Database. Entradas: St. Generosus e St. Fidelis of Sigmaringen.
- Tradição oral preservada pelo saudoso cronista Joaquim dos Mártires Neto Coimbra ( apontamentos copiados manualmente nos anos 70/80 pelo autor desta crónica na vetusta barbearia da velhinha Rua de Tras-da-igreja).
José Luz
(Constância)
PS – não uso o AOLP
















