A Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses moveu na Galeria de Pintura do Rei D. Luís, no Palácio da Ajuda, em 1994, uma exposição intitulada O Neomanuelino ou A Reinvenção da Arquitetura dos Descobrimentos, e a acompanhar o evento publicou-se um catálogo coordenado por Francisco Faria Paulino. Não tenho em conta a razão que me levou a visitar esta exposição, mas a soberba publicação permitiu-me finalmente a saber distinguir que nem tudo é neomanuelino dentro da grande envolvente desse movimento estético-artístico que dá pelo nome de neogótico. O comissário-geral desta Comissão Nacional era o escritor Vasco Graça Moura que não esconde um certo desdém e um profundo distanciamento sobre o nosso Património do neomanuelino. O prefácio da publicação diz coisas como estas:
“O século XIX e a sua cadeia de revivalismos, do neogótico ao neorromântico, passam inevitavelmente pelo pesadelo do neomanuelino e pelo seu cortejo de horrores sem nome.
Houve muito boa gente, de Ramalho Ortigão a Guerra Junqueiro, a protestar contra esses crimes de mau gosto entronizado. Mas cobre-nos de irrisão o facto de o gesto mais desassombrado de protesto não ter sido de iniciativa humana: consistiu, valha-nos isso, numa derrocada natural da pavorosa torre de Cinatti e Rambois erguida a meio da fachada do corpo do dormitório dos Jerónimos, em 18 de dezembro de 1878, data que seria para todo o sempre fasta se não tivessem morrido vários operários soterrados sobre os escombros. E cobre-nos ainda hoje de ridículo nacional a reconstituição da torre sineira, tal como subsiste, descaracterizando completamente as intenções arquitetónicas do programa originário e o ritmo da fachada sul do monumento, como se pode ver de alguma iconografia mais antiga.
E vão aparecendo essas presenças filigranadas e medonhas, traduzidas do manuelino em calão caprichoso, que são o hotel do Buçaco, o palacete de Monteiro dos Milhões, em Sintra, ou a estação do Rossio. Regra geral, os revivalismos da arquitetura do século XIX e das suas pretensões ornamentais geraram coisas hediondas, depois só continuadas, entre nós, por alguns prémios Valmor. O neomanuelino tornou-se então um dos nossos idiotismos oitocentistas mais relevantes e lamentáveis. O neomanuelino foi equívoco desastroso e eclético numa época de desorientação política e cultural, o emblema típico de uma decadência de valores mal assimilados e mal interpretados, organizados por uma gramática e por uma retórica que já nada tinham a ver com o espírito da época que os vira nascer e cuja utilização exacerbada talvez se explique depois pela crise do ultimato.”

Mas à parte a dureza desta catilinária, há que encontrar razões para o movimento estético que teve dimensão internacional: não se pode descurar a ofensiva romântica que se opôs às regras do classicismo; deu-se a ressurgência do sentimento religioso, despertou o gosto pelo exotismo e até pelo ocultismo; esbateram-se as referências ao humanismo greco-latino mediante as riquezas da história nacional e da idade média em particular. No caso português, importa não esquecer a dinâmica do movimento liberal que pretendeu superar o Antigo Regime propondo a regeneração, exaltou a glória nacional, tal como a regeneração liberal, esta aparecia como herdeira do ideário das Luzes. E como apareceu a palavra manuelino, até então desconhecida? É no poema Camões, que Almeida Garret emprega este termo, numa nota alusiva à Torre de Belém: “No tempo magnífico de Belém, naquele precioso exemplar do gótico florido, ou antes de um género tão único e especial que se deveria designar talvez por manuelino…”.
Os liberais sonhavam em superar a decadência, apostavam na instrução, no jornalismo, nos saraus literário-musicais, por exemplo. O termo “Regeneração” aparece como sinónimo de progresso material, de liberdade. Os olhos voltaram-se para o passado, procurou-se o nacionalismo arquitetónico. Enquanto se sonhava com a Revolução Industrial, em construções em ferro e aço, em estações de caminhos de ferro, fábricas e pontes, retomou-se a admiração pelas catedrais da Idade Média, elas vão assumir uma proporção romântica em edifícios como o Palácio da Pena, Castelos de Luís da Baviera ou nos Parlamentos de Londres e Budapeste – são construções que se apoiam no passado. O fator religioso irá pesar na arquitetura neomedieval e não se pode esquecer um critério prático, estas construções, do ponto de vista económico pareciam muito mais vantajosas, vão se multiplicar em igrejas e basílicas, em pavilhões reais de estadão, em museus, trata-se de um ecletismo correspondente aos valores do século. Em suma, esta é uma apreciação geral sobre o neogótico.
O neomanuelino tem outra figuração na sua análise. É incontestável que Dom Manuel I personificou conscientemente um projeto político imperial, ele acreditava na cruzada Cristã, assumia-se como agente da expansão da Fé, do Império do Espírito, tomou-se como uma figura imperial. O Rei e as manifestações do seu poder tronaram-se uma obsessão, vão aparecer na fachada da Igreja do Mosteiro dos Jerónimos, na pintura, nos retábulos saídos da oficina de Jorge Afonso, nos vitrais do Mosteiro da Batalha, nos frontispícios de algumas crónicas. Ora o revivalismo do século XIX, aos olhos dos eruditos românticos de Oitocentos pegaram no manuelino e fizeram dele uma arquitetura fantasiada, plasticamente rica, foi-se adaptando a restauros, reconstruções e novos edifícios, caso do Palácio Hotel do Buçaco ou da Quinta da Regaleira, chegou mesmo ao Brasil. Obviamente que o neomanuelino se manifestou dentro da corrente do neogótico, quem se admirava com o neomanuelino na arquitetura sabia que percorria toda a Europa uma vaga de neomedieval, mas a distinção do manuelino passa pelo cariz popular da sua ornamentação e como se espalhou, graças a mestres secundários ou operários, por palácios, moradias, igrejas. É errado ver, como escreve o historiador Pedro Dias, nos edifícios manuelinos as cordas ou as velas dos Descobrimentos. Diz mesmo que a expansão portuguesa não tem ligação direta na decoração inebriante e vistosa – mas é um facto que sem os Descobrimentos e sem a expansão portuguesa não veríamos hoje tantos e tão curiosos edifícios do tempo de Dom Manuel que irão retornar no neomanuelino. Como escreveu Regina Anacleto nesta publicação, o neogoticíssimo não conheceu em Portugal uma difusão semelhante à verificada nos restantes países porque foi substituído pelo neomanuelino. Não deixa de ser curioso constatar que o gótico foi por todo o lado interpretado como a verdadeira arquitetura cristã. A função desempenhada pelo neogótico, assumiu-a o neomanuelino, que passou a ter um carácter fundamentalmente moral.
Eu convido o leitor a procurar esta suculenta intrusão no neomanuelino e nas suas manifestações, a conhecer os protagonistas das arquiteturas neomedievais, pois assim teremos a faculdade de interpretar sem o furor de Vasco da Graça Moura, a mentalidade desses liberais, que eram mais ecléticos do que alguns historiadores fizeram supor. Esta publicação, inerente a uma exposição que deixou saudades, ajuda-nos a compreender o porquê da reinvenção da arquitetura dos Descobrimentos no século da Razão, do Positivismo e dos ideais nacionais.
Mário Beja Santos