A 24 de abril de 1974, Natércia Maia viu pela janela a coluna militar comandada pelo seu marido, o Capitão Salgueiro Maia, a sair de Santarém em direção a Lisboa, para fazer a revolução. Já sabia que ia haver um golpe militar, pois o marido tinha-a avisado das senhas que naquela noite e madrugada iam ser emitidas na rádio e o seu significado.
Nesta entrevista ao Mais Ribatejo, Natércia Maia conta como viveu o 25 de Abril. “Sabia que algo se estava a passar, tinha havido muitas reuniões em casa de uns e outros, e havia um grande descontentamento com a situação”, afirma-nos Natércia Maia.
“Tínhamos consciência de que as coisas não estavam nada bem no nosso país, com a guerra, o descontentamento pelo regime ditatorial, com a repressão da Pide e a censura, a miséria do povo… Chegaram todos à conclusão de que só havia uma solução, que era mudar o regime.”
“Estávamos sempre a ser vigiados pela Pide”
“Na minha rua, junto ao prédio onde moravam três capitães, havia sempre um Pide a vigiar-nos, para ver quem entrava e quem saia. As pessoas hoje nem imaginam o que era viver nesses tempos. E isso é grave, talvez por essa falta de memória, muitos jovens hoje não dão muito valor ao que já têm, a liberdade que foi conquistada a 25 de abril de 1974 e que hoje é já dada como adquirida “, afirma Natércia.
Professora de matemática, natural de Minde, Natércia casou em 1970 com Fernando Salgueiro Maia. Logo no ano seguinte, em 1971, viu-o partir para a guerra na Guiné. “Fiquei em Santarém, a dar aulas no Liceu. Viva cá há pouco tempo, não tinha família na cidade, então dediquei-me a dar aulas de manhã, à tarde e à noite. Era a forma de não pensar muito no que podia acontecer”.
“Nos jornais, havia a censura, as notícias eram poucas e as mortes apareciam meio escondidas em pequenos anúncios necrológicos. Eu tinha um mapa da Guiné atrás de uma porta e ia acompanhando as operações. Os militares comunicavam com as famílias através de aerogramas. Por vezes, vinham cinco cartas de uma vez, e eu passava a semana a ler e a reler, até vir uma nova dose de aerogramas. Era a nossa única forma de comunicação”.
“Logo após o casamento foi 2 anos para a guerra na Guiné”

Durante os mais de dois anos da comissão na Guiné, Natércia só falou com o marido uma vez, por telefone. “Uma amiga e colega, casada com um alferes que também estava na companhia dele, disse-me que ele tinha sido ferido, mas sem gravidade, acrescentou ela para aliviar. Eu pensei logo que ele tinha morrido ou estava gravemente ferido… Liguei para todo o lado, para o Ministério para a Escola Prática de Cavalaria, etc. e finalmente liguei para a Guiné e consegui falar com ele. Foi um dia, como deve imaginar, de grande incerteza”.
Uma guerra sem solução
“A guerra não tinha solução, e em especial na Guiné onde ele estava, as coisas estavam muito complicadas”, afirma Natércia. A tal ponto, que quando a companhia de Salgueiro Maia já estava em Bissau para embarcar para Portugal – até já tinham entregado as armas – surgiram graves complicações e ele foi chamado de urgência e teve de convencer os seus homens para retomarem as armas e partirem numa operação de apoio aos militares que estavam na povoação de Guidage”, recorda Natércia.
No inferno de Guidage
Guidage, uma povoação no norte da Guiné, junto à fronteira com o Senegal, tinha sido cercada por um grande contingente militar do PAIGC, e o general Spínola mandou a companhia de Salgueiro Maia fazer coluna para romper o cerco e socorrer os militares portugueses no inferno de Guidage. Salgueiro Maia cumpriu a missão com sucesso, mas com graves baixas. Destes acontecimentos, Salgueiro Maia deixou testemunho em textos que foram publicados no livro “Capitão de Abril: Histórias da Guerra do Ultramar e do 25 de Abril“, da Editorial Notícias.
“Em vez de regressar a Portugal em junho como estava previsto, ele só voltou em outubro, e, claro, durante estes meses na mata não houve correio… Foi o período mais difícil”, recorda.
Salgueiro Maia regressou a Santarém em outubro de 1973 e participa nas reuniões clandestinas do Movimento das Forças Armadas e, como Delegado de Cavalaria, integra a Comissão Coordenadora do Movimento.
“Vi a coluna a sair para Lisboa às 3 da manhã”

“Havia um grande decontentamento com a situação e os militares tinham consciência de que a única forma de acabar com a guerra era mudar o regime. Ele participou em muitas reuniões e, no dia 24 de abril de 74, antes de sair de casas, o meu marido informou-me das senhas que iam passar na rádio nessa noite. Disse-me: fica atenta à rádio, quando ouvires a canção E Depois do Adeus é sinal para preparar as coisas, e quando passar a Grândola Vila Morena é sinal para avançar com as operapções“.
Conseguiu dormir nessa noite?
“Fechei os olhos um bocadinho. Ainda os ouvi passar na avenida, pelas 3 da manhã. Fiquei com a rádio ligada, e acordei de madrugada com a leitura do comunicado a pedir aos médicos para comparecerem nos hospitais de Lisboa, o que me deixou assustada a pensar que as coisas não tinham corrido bem. Mas logo percebi que era apenas uma medida preventiva e fiquei a aguardar. De manhã, tentei fazer a minha vida normal, cheguei ao Liceu de manhã e o reitor, o Dr. Jacob estava à porta a dizer que tinha recebido ordens para fechar a escola, não havia aulas. Voltei para casa e fiquei a ver a televisão, à espera de notícias, mas a RTP não tinham imagens, só passava a música do hino do MFA. Até que apareceram as primeiras imagens e vi o meu marido junto ao quartel do Carmo e aí percebi qual era o papel dele naquela revolução”.
Conseguiu fazer uma revolução sem derramamento de sangue
A coluna de Salgueiro Maia começou por tomar o Terreiro do Paço, e depois avançou sobre o quartel do Carmo onde o Presidente Marcelo Caetano se tinha refugiado. “Foram várias horas de ansiedade e preocupação, até à rendição de Marcelo Caetano. O meu marido costuimava contar como entrou no gabinete do Presidente do Conselho, bateu os tacões das botas, fez continência e disse-lhe: apresenta-se o comandante das forças sitiantes, o senhor hoje já não governa! Marcelo Caetano respondeu que já sabia, mas queria entregar o poder a um general e não um capitão… Foi tratado com dignidade e mais tarde, já no exílio no Brasil, faz referência nas suas memórias ao Capitão Maia pela maneira como o tratou, com dignidade. Aliás, essa era a forma de estar dele, correta, pois considerava que não era com violência e a tratar mal as pessoas que se resolvem os problemas”. E a verdade que o Capitão Salgueiro Maia conseguiu fazer a revolução sem derramamento de sangue.
“Mesmo na guerra, quando foi para a Guiné, ele dizia que o objetivo n.º 1 era trazer os homens todos vivos. Portanto, tinham de ir bem preparados para po0derem regressar sãos e salvos”.
Natércia Maia recorda o dia 27 de abril, quando Salgueiro Maia regressou com a coluna a Santarém. “Lembro-me da Praça do Municíoio cheia de gente. Ele e mais três militares, entre eles o Alferes Maia Loureiro, a ser recebidos nos paços do Concelho e a vierem cumprimentar o povo da varanda. Tenho uma foto minha a descer a escadaria da Câmara e lembro-me de vir um menino oferecer um ramo de cravos. A alegria das pessoas era contagiante”.
“Alguns parecem ter-se esquecido que a liberdade foi conquistada no 25 de Abril”

As pessoas tinham consciência que a liberdade estava a chegar?
“Eu quero crer que sim, embora hoje alguns pareçam ter esquecido, como vimos nestas últimas eleições. Mas o importante é que o 25 de Abril deu oportunidade a que em liberdade possamos escolher quem nos governa. Eu nunca tinha votado antes do 25 de abril, como a maioria das mulheres portuguesas, e recordo que nas primeiras eleições democráticas e livres tivemos uma abstenção mínima. Acho que como cidadãos temos o dever e até a gratidão para quem, arriscando a vida, nos deu a liberdade. E aquilo podia ter corrido muito mal. O m eu marido levava uma granada e ele disse-me que se as coisas corressem mal ele fazia rebentar a grana e morriam uns quantos, mas enquanto há vitímas a luta continua. Por isso, o mínimo que podemos fazer é sermos bons cidadãos e par dos direitos não nos podemos esquecer de cumprir os deveres. E às vezes os deveres andam muito arredados do dia a dia. Uma coisa é lutarmos pelos nossos direitos, por melhores condições de trabalho, saúde, educação, habitação, tudo isso, e hoje temos a possibilidade de o fazer, mas há 50 anos não. Mas não pode ser desculpa para não cumprir”.
Salgueiro Maia injustiçado e maltratado depois depois do 25 de Abril
A seguir ao 25 de Abril, apesar do sucesso da revolução, o Capitão Salgueiro Maia não viu reconhecido o valor do seu trabalho como militar. Foi desterrado em 1977 para os Açores onde ficou até 1978. Depois foi colocado na Direção da Arma em Lisbnoa, ia a vinha de comboio todos os dias, e de seguida foi colocado no Presídio Militar de Santarém.
“Foi uma coisa incompreensível, porque habitualmente os chefes atribuem louvores aos subordinados que desempenham com sucesso as missões. Ele era um líder, uma pessoa com grande poder de decisão, ativo muito determinado e muito humano. Nem precisava de louvores, mas de ver reconhecido o seu trabalho como militar. E de repende vai para os Açores, onde, como contou, tinha uma secretária muito grande e não tinha trabalho…”
O Capitão Salgueiro Maia aproveitou o tempo para estudar. “Enviei-lhe os apontamentos e as sebentas do curso de Ciências Sociais e Políticas que ele depois viria a concluir, tendo concluído também o curso de Antropologia, depois de regressar em 1984 à Escola Prática de Cavalaria”, recorda. “Ele tinha um grande interesse por história e pelo património. E montou um museu na Escola Prática de Cavalaria, de que resta agora apenas uns azulejos num edifício com a indicação Museu Salgueiro Maia”.
“Disse-me uma vez que sentia que o tratavam como um traidor”
Como se sentiu Salgueiro Maia pela forma como estava a ser tratado?
“Ele disse-me uma vez – tratam-se como se fosse um traidor à pátria, então, que me julgem!”, afirma Natércia. “O meu marido nunca procurou protagonismo, era um profissional de exclência, e ser arredado das suas funções custou um bocado a engolir. Ele sentia-se triste e deve ter sofrido bastante com isso”.
Foi promovido a major em 1981 e, posteriormente, a Tenente-coronel.
Cavaco negou-lhe a pensão que depois deu a dois Pides
Em 1988, o então 1.º ministro Cavaco Silva recusou atribuir uma pensão vitalícia a Salgueiro Maia pelos “serviços excepcionais e relevantes prestados ao país”. Mas, passado pouco tempo, atribuíu essa mesma pensão vitalícia a dois antigos agentes da Pide, um deles entretanto teve direito a fotografia e destaque de capa na revisa de domingo passado no CM, falando com orgulho da tortura que infligiu aos prisioneiros políticos e justificando os tiros que mandou disparar da sede da PIDE no dia 25 de Abril, e que causaram a morte de quatro jovens e 45 feridos.
“Essa história da pensão tem de ser contada. Quando saiu o decreto em que militares podiam pedir ume pensão com base em acontecimenos em teatro de guerra, o meu marido chegou a casa e disse que ia fazer o pedido, mas com base no 25 de Abril. Era uma atitude provocatória. Ele querida provocar, porque sentia-se injustiçado e maltratado. Ele disse-me que queria que aquelas pessoas dissessem claramente que estavam contra o 25 de Abril. E surgiu na sequência daquela frase dele: tratam-me como se eu fosse um traidor à pátria, então tivessem a coragem de o assumir. Claro que ele não tinha direito à pensão pelo 25 de Abril, porque era só para acontecimentos em teatro de guerra. Até parece que o estou a ver, com aquele ar de gozo a dizer: vou aproveitar esta oportunidade para ver que atitude é que eles tomam em relação ao 25 de Abril. Era mesmo para os encostar à parede… Depois foram atribuídas as pensões aos Pides e toda a gente somou dois mais dois”.
“O filme O Implicado tem pouco a ver com a minha pessoa”
Salgueiro Maia “dizia de si próprio que tinha estado implicado no 25 de Abril”. E daí o título do filme O Implicado que estreou há dois anos. Como é que se viu a si e ao capitão Salgueiro Maia no filme?
“Em relação à minha pessoa, teve muito pouco a ver, mas não me incomoda nada. Há uns dias, encontrei uma senhora da minha terra, Minde, que me tinha visto no filme e que achou que eu não era nada assim. Eu acho que est6e tipo de filme não devia ser ficcionado, porque quem vai ser não sabe o que é verdade e o que é ficção. E há ali muita ficção. Uma amiga nossa disse-me há uns tempos para transmitir a quem fez o filme que o Maia era bem melhor do que aquilo que aparece no filme”.
Um homem alegre e e que gostava de estar com os amigos

E como era o Maia?
“O Maia, como tratavam os amigos, era uma pessoa alegre, que gostava e estar com os amigos. Tinha humor e gostava de cantar. Juntávamo-nos em nossa casa e havia sempre um amigo com o acórdeão, outro tocava viola e trazia as músicas do Coro de Santarém, e o Maia cantava ou tocava tambores africanos. Eram uns serões muito animados. Tinhamos também um grupo de amigos que faziam connosco as festas de passagem de ano, carnaval e fazíamos passeios pelo país. Ele era o líder que organizava essas viagens ao pormenor. Todos os anos fazíamos uma viagem ao estrangeiro com amigos, e normalmente fazíamos campismo. E foi assim até 1991, ano em que fomos fazer uma viagem pela Holanda e Alemanha, a nossa última viagem”.
Em 1989, foi-lhe diagnosticada uma doença cancerosa que, apesar das intervenções cirúrgicas, o vitimaria a 4 de abril de 1992.
Ainda em vida, em 1983, foi condecorado com a Grã Cruz da Ordem da Libherdade pelo Presidente Ramalho Eanes. A título póstumo, foi condecorado com o grau de Grande-Oficial da Antiga e Muito Nobre Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, a 28 de junho de 1992, e em 2007 a Medalha de Ouro de Santarém.
Foi agraciado a título póstumo pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, com a Grã-Cruz da Ordem do Infante D. Henrique, a 25 de abril de 2016, tendo a condecoração sido entregue à viúva a 30 de junho de 2016, véspera do dia em que completaria 72 anos de vida.
“Não queria qualquer reconhecimento para ele, queria era ver o País progredir”
Salgueiro Maia “não estava à espera de qualquer reconhecimento, o que ele queria, concerteza, é que isto corresse tudo bem, que Portugal fosse melhorando e não houvesse problemas tão graves como os que ainda sssistimos. Pore exemplo, a corrupão era uma coisa que mexia muito com ele”, afirma Natércia. Sublinha, no entanto, que “nestes 50 anos muita coisa boa foi feita e Portugal hoje não tem nada a ver com o que era antes do 25 de Abril. As pessoas é que têm uma memória muito curta. E melhorar o país está nas nossas mãos, o 25 de abril não tem culpa nenhuma daquilo que somos incapazes de fazer para melhorarmos a vida das pessoas”.
Portugal hoje está incomparavelmente melhor do que há 50 anos
Claro que o 25 de Abril valeu a pena. E Natércia Maia dá, como bom exemplo do progresso do país nestes 50 anos, a educação. “Quando fiz a 4.ª classe na minha escola em minde, eramos apenas quatro meninas, e eu só continuei porque a professora conseguiu convencer os meus pais de que eu era boa aluna e era pena não continuar a estudar. Na altura, havia poucas escolas públicas, tinha de escolher entre Santarém e Leiria, e acabei por ir para um colégio privado em Torres Novas. Meus pais eram operários nas fábricas de Minde e tiveram de gerir muito bem para pagar o colégio. Era para me tornar professora primária, pois numa visita à Giesteira, uma aldeia próxima que na altura era muito pobre, as pessoas viviam sem condições nenhumas, e eu senti um espírito de missão, para ajudar aquelas crianças, talvez por influência das freiras. Em vez disso, acabei por prosseguir os estudos na Univerdade de Lisboa, concluí o curso de matemática, e depois vim como professora de matemática para o Liceu de Santarém. Entretanto, voltei há uns tempos, à aldeia da Giesteira e não tem nada a ver com aquilo que havia há 50 anos, hoje as pessoas vivem muito melhor”.
















