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Entrevista | Carlos Cruz – “O 25 de Abril foi o dia em que deixámos de ter medo”

Carlos Almeida Cruz, 87 anos, operário aos 12, padre aos 26, professor, sindicalista, preso político, torturado pela PIDE, fundador da Escola de Música de Santarém, do jornal O Ribatejo e dinamizador da candidatura presidencial de Maria de Lourdes Pintasilgo. Um humanista que dedicou a vida à liberdade, à cultura e à justiça social. Nesta entrevista, conduzida por João Baptista, revisita momentos marcantes da sua vida.

Carlos Cruz
Carlos Cruz

Aos 87 anos, Carlos Almeida Cruz é testemunha viva do século XX português: operário, padre, professor, sindicalista, preso político, ativista cultural e fundador de projetos emblemáticos em Santarém como a Escola de Música e o jornal O Ribatejo. Uma conversa que é um mergulho na história da resistência e da liberdade.

No ano em que Portugal comemora meio século sobre a Revolução dos Cravos, o Mais Ribatejo dá voz a uma figura marcante da resistência ao regime ditatorial. Carlos Almeida Cruz, nascido em Angeja e radicado em Santarém desde 1975, tem uma vida dedicada à causa pública, à justiça social e à cultura.

Nesta entrevista conduzida por João Baptista, partilha episódios da infância pobre, da repressão política, das torturas da PIDE, do entusiasmo da Revolução de Abril e da sua missão enquanto educador e cidadão ativo. Um testemunho raro e profundo, que ajuda a compreender o que custou conquistar a liberdade de que hoje desfrutamos.

Carlos Cruz
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“Assisti ao Salgueiro Maia, ao vivo, no Largo do Carmo. Foi um herói generoso.”

Mais Ribatejo – Onde estava e o que sentiu no dia 25 de Abril de 1974?

Carlos Cruz – Estava em Lisboa. Na véspera, dia 24, estive reunido com sindicalistas metalúrgicos, entre eles o Jerónimo de Sousa, para preparar um manifesto para os trabalhadores da TAP. Já depois da meia-noite, recebemos a notícia de que os militares estavam nas ruas. Saí de casa e fui ter com os meus companheiros. Acabei por estar no Terreiro do Paço, depois no Largo do Carmo, a assistir a tudo. Foi o dia mais feliz da minha vida. A sensação maior foi a de que o medo desaparecera. A liberdade estava finalmente à nossa frente.

Pode ver aqui a entrevista completa:

 

“Fui preso, torturado, expulso do ensino por ensinar os meus alunos a pensar.”


Mais Ribatejo – Foi perseguido pela PIDE. Como começou essa perseguição?

Carlos Cruz – Fui expulso do ensino em 1969 por motivos políticos. Eu era professor de Religião e Moral, mas em vez de ensinar catequese, punha os alunos a pensar sobre os problemas reais da vida: a guerra colonial, a fome, a desigualdade entre raparigas e rapazes. Levei assistentes sociais às aulas, usava jornais para mostrar os mortos da guerra. Isso era intolerável para o regime. Mais tarde, fui preso várias vezes. Em 1972, estive em isolamento e fui submetido à tortura do sono durante dez dias.

Carlos Cruz
Carlos Cruz

“A Igreja recusava-se a falar da guerra. Nem no Dia Mundial da Paz nos deixavam falar.”

Mais Ribatejo – Chegou a estar ligado à oposição dentro da própria Igreja?

Carlos Cruz – Sim. Fui padre em Vila Franca de Xira, mas optei por uma vida ao lado dos operários e dos jovens. Trabalhava numa padaria e recusava a vida clerical tradicional. Juntei-me a outros católicos progressistas, participei em vigílias contra a guerra, como a da Capela do Rato. Mesmo dentro da Igreja, fomos perseguidos. A hierarquia preferia o silêncio conivente com o regime.

“Nunca fui do Partido Comunista. A minha luta sempre foi pela justiça e pela liberdade.”


Mais Ribatejo – Nunca aderiu ao Partido Comunista?

Carlos Cruz – Não. Colaborei com muitos comunistas, mas nunca fui militante. Participei em movimentos como a Comissão Democrática Eleitoral e estive ligado ao MDP/CDE. A minha luta era pela justiça e pela liberdade, sem filiação partidária.

Carlos Cruz
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“Felizmente, tive pais pobres mas corajosos. A herança do meu pai foi obrigar-me a fazer a 4.ª classe.”

Mais Ribatejo – Como chegou a Santarém?

Carlos Cruz – Vim em 1975, com a minha mulher e a filha, depois de ser reintegrado no ensino. Fui trabalhar para a Escola Ginestal Machado. Em Santarém, envolvi-me no movimento associativo, na vida cultural e no jornalismo.

“O jornal O Ribatejo foi uma pedrada no charco no jornalismo regional.”


Mais Ribatejo – Foi fundador da Escola de Música e do jornal O Ribatejo?

Carlos Cruz – Sim, estive na origem da Escola de Música que deu origem ao Conservatório. No jornal O Ribatejo, criado em 1985, fui um dos fundadores e membros da direção. Era um jornal independente, com qualidade, que dava voz a todos. Teve um papel importante na região durante mais de 30 anos.

Carlos Cruz
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Mais Ribatejo – Também esteve envolvido na candidatura de Maria de Lourdes Pintasilgo à Presidência da República?

Carlos Cruz – Fui um dos primeiros a sugerir-lhe a candidatura, numa conferência em Santarém. Depois, integrei o grupo que a apoiou desde o início. A pré-campanha começou literalmente em minha casa, com um cozido à portuguesa. Foi um projeto bonito, mas sabotado por interesses partidários, especialmente pelo PCP, que lançou o Salgado Zenha.

“Muitos jovens não sabem o que era viver antes do 25 de Abril. Cabe-nos contar-lhes a verdade.”


Mais Ribatejo – Hoje, aos 87 anos, continua ativo na vida cultural e cívica?

Carlos Cruz – Continuo. Faço parte de coletividades, participo em encontros, dou testemunhos nas escolas. O que mais me preocupa hoje é ver jovens a ignorar o passado e a apoiar discursos autoritários. Há falta de memória, e é por isso que continuo a falar. Para que não se esqueça.

“A extrema-direita ganha força porque falhámos em transmitir a memória da ditadura.”


Mais Ribatejo – O que sente quando vê a ascensão da extrema-direita?

Carlos Cruz – Sinto tristeza. Muitos jovens desconhecem o que era viver antes do 25 de Abril. Não sabem o que foi a miséria, a censura, a repressão. Cabe-nos contar-lhes a verdade. Mostrar-lhes que a liberdade que hoje têm foi conquistada com sofrimento e coragem.

Carlos Cruz
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🎧 A entrevista completa está disponível em vídeo e áudio no podcast do Mais Ribatejo, no YouTube e nas plataformas habituais:

 

 

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