Na suposição de que o leitor nutre um certo entusiasmo pela literatura de crime e mistério, a leitura que hoje de propõe é um verdadeiro prato de substância para quem gosta de uma investigação a um presumível crime ocorrido há tempos.
A saudosa Coleção Vampiro, seguramente a mais importante que se editou em Portugal com obras marcantes sobretudo das décadas de 1930 a 1970, teve o seu primeiro título, de Agatha Christie, Poirot desvenda o passado, exatamente a história da filha de uma potencial homicida que terá envenenado o pai, o lendário detetive belga aceita a missão e sonda todos aqueles que se envolveram nesse dramático acontecimento, como é da praxe, temos o desfecho final com uma assombrosa solução.
O número 61 da referida coleção tinha como título O Crime da Raposa, editado nos EUA em 1945, e dentro de uma série de romances (de um modo geral obras de grande talento) a que se pôs o nome de O ciclo de Wrightsville, uma cidade imaginária concebida pelos dois primos que, ainda hoje, nas principais assembleias internacionais em que se reúnem estes escritores, são considerados o expoente máximo deste subgénero literário.

Que passado irá desvendar o conceituado Ellery Queen? Chegou a Wrightsville e recebido triunfalmente, o capitão Davy Fox, um herói norte-americano que se distinguiu na Ásia. Na estação de caminho de ferro esperam-no a mulher, Linda, os tios, Emily e Talbot, os tios que educaram Davy, depois da morte da mãe, por envenenamento, o seu pai foi julgado e condenado a prisão perpétua, depois da delirante receção vamos ser confrontados, julgamos nós, com aquilo que hoje se chama o síndrome pós-traumático da guerra, mas na verdade a questão é muito mais delicada, Davy começa a revelar um grau de ferocidade com a mulher, vive isolado, repudia visitas, ocorrem-lhe pesadelos durante o sono, Linda propõe-lhe que se encontrem com Ellery Queen, a quem se conta o trauma de infância que Davy, amava profundamente os pais, após a morte da mãe e a prisão do pai foi educado pelos tios, continua a acreditar na inocência do pai, este nega insistentemente que tenha praticado tão nefando ato. Vai começar a investigação, primeiro Ellery consulta os arquivos, lê os jornais da época, fala com os oficiais da justiça que acompanharam o processo, depois começa a entrevistar pessoas que acompanharam o trágico acontecimento, Ellery consegue que o pai de Davy, Bayard Fox, venha da penitenciária e rememore tudo quanto se passou à volta do chamado envenenamento.
O leitor já está completamente agarrado à investigação, são surpresas umas atrás das outras, havia um triângulo amoroso, Talbot apaixonara-se por Jessica, a mãe de Davy, esta revelação parece ir pesar nos acontecimentos trágicos, Jessica estivera profundamente doente, no dia em que saiu da cama e se sentou na sala, pediu um copo de sumo de uva, descobrir-se-á que bebeu um copo com 30 gramas de digitalina, todos os movimentos apontavam para uxoricídio. A tensão sobe, procura-se esclarecer-se tudo sobre os copos que foram usados, o jarro, os movimentos de Bayard, as receitas constantes na farmácia, um estranho pedido em dois dias consecutivos de frascos de 100 comprimidos de aspirina, o facto de o médico de família ter suspendido a toma de digitalina pela doente. As investigações feitas pelas autoridades tinham comprovado que as vasilhas usadas não estavam contaminadas, que a dose excessiva de digitalina fora imperativamente ingerida com sumo de uva, a única coisa que Jessica tomou antes de ser acometida de violento mal-estar. Alguém furtivamente vai à casa há doze anos fechada, Ellery vai atrás do intruso, será agredido. Tempos depois, de modo fulgurante, o detetive descobre quem praticou a intrusão, o que roubou e porquê.
O que há de espantoso no poder narrativo deste romance é como se mostra, quase cientificamente, que houvera uxoricídio e, passo a passo, entram episódios e personagens que não constavam da investigação criminal de há doze anos. O que o intruso irá revelar será o início da reviravolta de toda a investigação, descobrir-se-á que Jessica recebera uma visita de um amiga, pura coincidência, Bayard estivera ausente depois de dar o copo de sumo de uva à mulher cerca de duas horas, será descoberta essa visita que introduz uma revelação arrepiante, tudo apontava para o suicídio de Jessica, devido às consequências daquele triângulo amoroso que inquinava a vida de dois irmãos e respetivos casamentos, iria fatalmente pôr fim à empresa que os dois irmãos geriam, foi assim que se especulou depois de se descobrir que a visita bebera também sumo de uva e nada lhe acontecera.
E chega a hora de Ellery Queen introduzir um elemento devastador, Bayard diz-lhe abertamente que ele compusera um quadro explicativo que era uma pura confabulação. E Ellery exige que a verdade seja conservada em segredo. O leitor leva um murro no estômago quando sabe quem pusera a digitalina num copo que Jessica fora buscar ao armário. E o final deste empolgante romance é forjado para ficarmos expectantes com a densidade do enredo:
“Jessica Fox enterrada no cemitério de Twin Hill… Alvin Cain a andar de um lado para o outro na sua cela, na parte mais alta do edifício do tribunal da comarca… Talbot e Emily ocupados a remendar o tecido rasgado das suas existências… Davy e Linda e a vida que recomeçava… Bayard, livre, enfrentando Wrightsville com a força que lhe proporcionava o seu segredo…”
Tenho muitas saudades destes romances que giravam à volta de um problema que se apresentava propositadamente como insolúvel, ultrapassando todos os ardis e obstáculos, havia sempre um detetive que chegava magistralmente à verdade, sabia regalar o leitor, criando-lhe a exigência e a fidelização a obras em que o narrador desafiava abertamente quem o lia a encontrar a solução. Pergunto-me como é que é possível os grandes escritores de hoje considerarem Ellery Queen como o gigante desta literatura, isto quando Ellery Queen só é possível ser encontrado nas bibliotecas.
Mário Beja Santos











