Escuso de dizer ao leitor que a apreciação literária goza dos mesmos preconceitos, tabus, clichés, que qualquer outra fonte de conhecimento – parece haver uma ficção séria e o resto, e este resto não conta. Basta pôr na capa “Best-seller”, “Thriller”, “Suspense”, “Crime e mistério”, “Literatura fantástica”, “Sobrenatural”, e muita gente logo torce o nariz, teme ir folhear vulgaridades sem fim, puros passatempos daquela literatura feita a metro, particularmente exposta nas livrarias dos aeroportos (mas também bem exibidos nas montras das livrarias). Acontece que uma lista infindável de grandes autores trata com mestria – isto para já não me socorrer do termo génio – o suspense, os casos de espionagem, duríssimas viagens ao passado numa tentativa de esclarecer o presente. Recordo, a título meramente exemplificativo, obras que continuam a deliciar os leitores como Rebecca, de Daphne du Maurier, O Fator Humano, de Graham Greene, e até mesmo, Todos os Nomes e O Homem Duplicado, de José Saramago.

Serve este curto proémio para falar do romance Antes de te Conhecer, de Lucie Whitehouse, Bertrand Editora 2017. Escuso de enfatizar que um bom livro tem inevitavelmente uma história bem contada. No caso presente, há mesmo thriller, pânico, desorientação, violência e medo. O que deixa o leitor suspenso logo nas primeiras páginas é que Hannah foi buscar o seu marido ao aeroporto de Heathrow, ele não aparece, não está contactável, ela fica intrigada, manda mensagens pelo telemóvel a Mark, o marido. Encontra na sua mente que se preocupa sem razão, teria havido uma reunião de última hora, nada de neurose, tudo estava bem. Mas não estava, procura contactar telefonicamente a secretária de Mark, deixa mensagem. Mark é um bem-sucedido empresário, está à testa da DataPro, muita tecnologia de ponta, escritório em Londres, negócios por todo o mundo. Mark reaparece no telemóvel, perdera o avião, deixara o telemóvel no táxi, o WiFi não funcionava, subitamente surgiu um tipo que se quer juntar à empresa. Neste entreato vamos saber que Hannah é uma mulher independente, possui um espírito de sólida determinação, conhecera numa reunião de amigos, em Nova Iorque, Mark Reilly, veio a paixão, transferiram-se para a elegante casa de Mark em Londres, ela sente-se felicíssima.
Mas começa a desorientação, Hannah questiona os colaboradores de Mark, eles acham que ele está em Roma, prosseguem as rememorações de toda aquela relação, vai germinando, insidiosamente, em segurança, há ali qualquer coisa a faltar à verdade. A espera alonga-se em dias, o leitor já está enredado em múltiplos desfechos intrigantes, são de pôr hipóteses mirabolantes, Hannah ligou para hotéis de Nova Iorque que Mark frequenta, não consta a sua estadia. Hannah decide ir aos escritórios da DataPro em Hammersmith, a start-up ocupa folgadas instalações, Hannah vasculha a secretária do marido, entra em estado de choque, há hipotecas, a conta pessoal dela foi devorada, sente-se humilhada, ela agora é uma mulher desempregada a viver na casa do marido, de quem não receber qualquer informação financeira, a empresa é próspera, mas Mark está endividado, o dinheiro de Hannah desaparecera. Surgem mais pistas desencontradas, estranhas viagens por Inglaterra, mais rememorações sobre o princípio e desenvolvimento daquela paixão, Hannah procura amigos do casal, manifesta a sua inquietação, todos a tranquilizam, há para ali um mal-entendido que certamente se vai esclarecer. Hannah tem uma boa relação com o irmão, este dá-lhe imenso apoio emocional, chegara uma nova mensagem de Mark dizendo que não apanhara o avião, estava a trabalhar no hotel, ia comer qualquer coisa e tentaria ligar de novo, coisa que não aconteceu.
Hannah consegue conversar com a secretária de Mark, havia uma pessoa que ligava constantemente para ele, uma mulher, ela irá descobrir de quem se trata, é uma renomada cirurgiã de transplantes, cresce a fúria e o ciúme, Hannah procura a médica, esta confirma os telefonemas, estiveram a falar de Nick, Hannah fica estupefacta quando sabe que Nick é irmão de Mark e está na prisão.
Novas memórias, conversas passadas com Mark acerca deste irmão. Nisto Mark regressa a casa, Hannah pede-lhe explicações sobre o irmão, parece um credível retrato do corpo inteiro, é um extenso rol sobre a vida familiar, as relações dos seus pais e daqueles dois irmãos. Hannah tudo pesquisa no computador sobre Nick, e vem a informação de que fora considerado culpado de homicídio involuntário, é uma história escabrosa que culminou na sua prisão. Nova viagem de Mark, mais recolha de dados sobre Nick, afinal fora contratado como gestor de projetos na DataPro, mais desorientação para Hannah. Parece surgir uma proposta de emprego aliciante para esta. Regresso de Mark, vem com quatro explicações um tanto nebuloso, vamos finalmente entrar no quadro relacional crítico, Hannah diz que sabe a verdade de Nick, nada está conforme com a apresentação que Mark fizera, este procura justificar-se, não queria magoá-la falando do mau carácter do irmão, e vêm mais confissões que a deixam aterrada, Nick é dono de parte da DataPro.
A médica dos transplantes será assassinada, Nick deixara a prisão, cresce a tensão com a espera do contacto de Nick a Mark, o leitor não pensa agora que o encaminha explicitamente para o desfecho trágico que se prepara. O que tenho a dizer depois de ler e reler o thriller intrigante, é que ele é eficaz, gera em espiral a revelação de uma mente perturbada, tem clímax, um final assombroso, a escritora domina uma narrativa de tensão fazendo acumular revelações atrás de revelações, é madura e esplendente a jogar com as mais profundas vulnerabilidades e emoções humanas.
Pode vender-se nos escaparates das livrarias dos aeroportos, mas é um belíssimo romance, mais do que um romance negro, permanentemente intrigante; enfim, uma história muitíssimo bem contada que nos deixa inquietos sobre o peso do real plausível que pode superar a ficção.
Mário Beja Santos











