À data da publicação dos ensaios originais de que iremos falar, sou ainda um jovem adolescente, vivo num período do Estado Novo conhecido por Anos de Chumbo, vivo igualmente ciente de que o regime que nos governa é antiliberal, antidemocrático e antiparlamentar, anuncia-se corporativista e pauta-se por a bem da Nação.
O dicionário crítico de algumas ideias e palavras correntes, por António José Saraiva, Publicações Europa-América, dezembro de 1960 foi rapidamente retirado do mercado pela PIDE, como se dizia na época, comportava ideias dissolventes e atentatórias ao espírito nacional. Saraiva era declaradamente um opositor do Estado Novo, possuía obra feita no campo da historiografia e literatura e da cultura portuguesa. No ano seguinte à publicação deste dicionário crítico exilou-se em Paris. Intelectual polémico e controverso, os seus trabalhos no campo da literatura, nomeadamente a sua história da literatura portuguesa, publicada com Óscar Lopes, têm alto reconhecimento, e continuam a ser uma referência da cultura.

Este dicionário tê-lo-ei lido teria 18, 19 anos, tornou-se um companheiro fiel até ao 25 de abril, guardei para todo o sempre o que o historiador registou como liberdades, democracia, materialismo, idealismo e progressismo e o que distingue um país real de um país legal de um país fabuloso. Falando da América, dirá:
“O Americano continuará a entregar os seus destinos a homens de negócio experimentados e bem-sucedidos, convicto de que as regras da empresa capitalista são necessariamente as regras universais e eternas da prosperidade. Até quando? E até quando cada americano continuará a julgar-se um herói do Far West ou um Rockefeller em potência, colhendo os frutos que Deus distribui como prémios ao trabalho e à iniciativa.”
Falando do Cesarismo, dirá: “A solução do Cesarismo consistiu em regar a cidade com as riquezas do Império. Os ricos puderam enriquecer ilimitadamente com a rapina das províncias, as empresas coloniais, o fornecimento dos exércitos, etc. Os pobres foram contemplados com a anona, com a distribuição de dinheiro, com os espetáculos, com as termas, tudo gratuito. Com isto o cidadão romano pôde, durante algum tempo, subsistir na ociosidade e as lutas sociais apaziguaram-se.
Quais são as condições que hoje tornariam o Cesarismo uma necessidade histórica? Nenhuma. Os povos coloniais não representam já uma massa inerte, antes despertam para a consciência política.”
O historiador da cultura irá igualmente desmontar o corporativismo, ele não existe em parte nenhuma, as corporações medievais de modo algum podiam ser adaptadas à realidade do mercado atual. Falando claramente do corporativismo do fascismo italiano, dirá que não deixou em Itália qualquer vestígio, fora a forma política com que Mussolini consagrara o partido único e limitara as liberdades públicas. Explana sobre a Declaração dos Direitos do Homem, a democracia e o progresso social, a educação e a democracia, assim chegamos ao Laicismo, depois o Liberalismo, e mesmo com suavidade Saraiva é contundente no seio de um regime a que ele se opõe, observando coisas como esta:
“Tanto o liberal do século XVIII como o do século XX sustentam que os homens são livres e iguais. Mas o liberal do século XVIII, para quem o obstáculo mais evidente a essa igualdade eram os privilégios feudais, considerou suficiente a abolição destes. Ao liberal do século XX antolha-se outro obstáculo: os privilégios económicos. Aboli-los ou corrigir os seus efeitos é a alternativa que se lhe oferece, se quer ser um liberal em espírito e não apenas na letra.”
Dissertará largamente sobre liberdade e liberdades, e haverá um ponto da sua análise que eu guardei para todo o sempre: o que distingue país real, de país legal e país fabuloso. Terá nascido em França a expressão país legal, fazendo a distinção entre cidadãos ativos que votavam por terem o rendimento para tanto exigir na lei, e os cidadãos passivos, que não votavam por o não terem. País legal é o país que tem peso na burocracia, no jornalismo e na política. O país real é outra coisa, é o país da gente que trabalhava e era ignorada dos jornais. Encontramos esta distinção em Alexandre Herculano. Nos regimes autocráticos em que as instituições, incluindo a imprensa se subordinam a um poder de um chefe e do seu círculo, estes dois países são incomunicáveis. Só posso concordar com a observação porque ela traduz a realidade portuguesa de 1960, três quartos de século depois o país real e o país legal mudaram radicalmente.
O que me deixa mais circunspecto é o país fabuloso, o melhor dos mundos possíveis. Tudo nele decorre segundo o programa previsto. As pessoas são felizes, trabalham e produzem. Há um grupo numeroso que se mostra agradecido aos governantes. Nesse melhor mundo dos mundos os meios de comunicação social dão preferência às comemorações, às congratulações, aos contos de fadas. Claro que este país fabuloso que Saraiva observa não é o país fabuloso de hoje, o de ontem exaltava as fábulas e punha um véu ao país efetivo, não havia suicídios, não se mostravam fotografias de gente de pé descalço, teciam-se hossanas pelas inaugurações.
Extrapolando para os tempos de hoje, a atmosfera fabulosa tem outros predicados, corresponde às exigências político-partidárias: o que é risonho e exaltante para quem governa, propagandeando resultados, não ilude que o estilo de governação procura dificultar a formação da consciência correspondente à realidade social. Temos a fábula do equilíbrio orçamental, dos êxitos desportivos, de sermos um dos países mais seguros do mundo, e estas linhas de orientação esbarram com os que clamam permanentemente de que o país está a perder identidade nacional, de que alastra a mancha da corrupção, etc. e tal. Dito por outras palavras, temos diferentes países fabulosos hoje contrastando com temores e presságios funestos, o que, evidentemente, nos faz repensar o país legal e o país real.
E nunca esqueci o que António José Saraiva escreveu sobre a tradição, causa tão arreigada ao pensamento conservador e que vem hoje na linha do que foi o Antigo Regime, a saudade dos tempos imperiais, o conservadorismo do Estado Novo que veio a ser sistematicamente posto em causa pela geração de 1960 em diante. A tradição pode ser uma múmia impedindo a passagem dos vivos. Não é um incitamento, mas uma proibição. Essa suposta tradição não nos ensina o que devemos fazer, mas decreta só o que não devemos. Não é um fator de crescimento, mas de estagnação.
No entanto, a tradição também pode ser considerada e aproveitada criticamente. Ela é uma herança recebida das gerações que nos precederam, na qual há um ativo e um passivo. Ativo porque a linguagem que falamos, os conhecimentos empíricos, certas formas sociais de convívio e comunicação, constituem uma herança sem a qual nenhuma geração podia sobreviver, herança que não é monopólio de ninguém, é um bem coletivo. O passivo desta herança é constituído pelos erros provenientes da ignorância, por automatismos criados para fazer face a situações e meios que já desapareceram. Na longa passagem dos homens sobre a Terra vão se acumulando as sobrevivências de etapas já vencidas, como na evolução das espécies os órgãos sem valor funcional.
Cabe aos homens do presente tomar consciência da tradição para poder usá-la. Ou eles são escravos da tradição, e nesse caso, escravos dos privilégios que por trás delas se entrincheiram ou são senhores dela e, portanto, dos benefícios por ela acumulados e do futuro que ela preparou.
É por demais compreensível como as temáticas destes ensaios de António José Saraiva incomodaram os corifeus do Estado Novo.
É leitura que se recomenda, permite-nos avaliar o que se superou em Portugal, três quartos de século volvidos.
Mário Beja Santos