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Leituras Inextinguíveis (191): Para que o criminoso se denuncie, preciso de conhecer, antes de mais, o essencial da vítima

Talvez o leitor não saiba que Georges Simenon continua na lista dos autores franceses mais lidos em todo o mundo. Em vida, conheceu a fama e o proveito. Um quase verbomaníaco, Simenon não escreveu só literatura de crime e mistério, dedicou muito do seu tempo ao romance psicológico, e a prova provada de que era um escritor de eleição são as suas Memórias Íntimas.

Georges Simenon (1903-1989)

Andou perto dos grandes prémios literários, era óbvio que havia a grande desconfiança dos intelectuais petulantes que consideravam que Simenon aspirava a publicar e ter sucessivas reedições de obras redigidas com uma simplicidade desarmante. Aconteceu a Simenon o mesmo que aconteceu a outros grandes escritores como James Joyce, Jorge Luís Borges ou Jorge Amado, o Nobel da Literatura foi-lhes negado. E Simenon continua a andar de mão em mão e o comissário Maigret continua a gozar da predileção de um público heterogéneo, supraclassista, Maigret não tem rival pelo modo como investiga e o seu face-a-face com o homicida no seu gabinete da Polícia Judiciária é arrebatador.

Tenho para mim, que conheço a generalidade dos seus romances que este Maigret e o Assassino, obra datada de 1969, é onde melhor se talha a sua observação sobre o crime e o criminoso, como ele se defende das apreciações críticas dos diferentes juízes com quem trabalha, arriscando mesmo a sua reputação ao definir uma linha de investigação muito pouco canónica.

Vamos ao enredo deste romance. Primeiro, aquela atmosfera do jantar mensal em casa dos Pardon. Chovia a cântaros, havia três dias que a água caía por rajadas, lá conseguiram um táxi, jantaram-se bifes à borgonhesa, o Dr. Pardon estava visivelmente exausto, desabafou com Maigret que estava tornado num funcionário público, já não podia consagrar a cada doente o tempo indispensável. É nisto que vamos entrar num imprevisto, entrou um cliente do Dr. Pardon a anunciar que estava um ferido no passeio, talvez às portas da morte. Pardon e Maigret avançam para o local do sinistro, no chão jazia um homem que não devia ter mais de vinte anos, tinha as costas do blusão manchadas de sangue. Maigret vai fazendo perguntas num bar ali ao pé, o sinistrado por ali andara, havia uma particularidade, o ferido trazia a tiracolo um gravador de cassetes.

O jovem chegara morto ao hospital, fora vítima de uma série de facadas. Removidos os documentos descobre-se o nome e a morada, é Maigret quem vem dar a triste notícia aos familiares. O pai do assassinado é um homem muitíssimo conhecido, dono de perfumes e produtos de beleza de grande conceito. Quando anuncia a morte aos pais do jovem, Simenon revela o seu desmesurado talento na construção da atmosfera da catástrofe:

Maigret teria preferido não ter de olhar para eles, não assistir àquele desmoronar brutal. O casal mundano, cheio de segurança, de desenvoltura, desaparecia; os trajes deixavam de provir de costureiro e alfaiate famosos; o próprio apartamento perdia a elegância e sedução. Só ali estavam um homem e uma mulher fulminados, que ainda se debatiam para descrer da notícia que acabam de dar-lhes.”

Entra-se no afã da investigação. Descobre-se que o jovem tem como passatempo favorito andar a gravar conversas pelos mais diversos lugares. Segundo o testemunho do italiano que vira o jovem que estava ferido na rua, houvera algo que o impressionara, vira naquela noite chuvosa alguém a golpear rapidamente o jovem, o assassino dera alguns passos para mudar de direção, mas retrocedera, curvou-se e vibrou ainda duas ou três facadas, pegara na cabeça do jovem como quem queria ler atentamente o seu rosto, e depois desapareceu no turbilhão da chuva.

Acontece que aquele gravador vai levar a Polícia Judiciária à descoberta de uma rede de gatunos de mansões de gente rica, começa a caçada, os meliantes são apanhados com a boca na botija. Há testemunhos na rua de tudo quanto se passara. Começam os interrogatórios dos ratoneiros, cedo Maigret se apercebe que o crime praticado nada tinha a ver com qualquer um dos membros da quadrilha de ladrões. Maigret ainda tenta outras pistas, procura conversar com a irmã do assassinado, uma jovem muito lúbrica que não deixa de se atirar ao corpulento comissário que caminha para a reforma. Aparentemente, o caso aprece ter entrado num beco sem saída. É nisto que um chefe de redação de um conhecido jornal telefona a Maigret dizendo-lhe que receberam uma carta anónima a refutar qualquer responsabilidade aos gangsters. Vai começar uma relação epistolar e telefónica entre o homicida e Maigret. A investigação culminará com o criminoso em casa do casal Maigret a confessar o homicídio. É uma conversa que nos dá o retrato psicológico do homicida, alguém que sentindo confiança na humanidade do comissário, descreve-se sem dó nem piedade:

“Tenho passado a vida a ter medo… sobretudo medo de ver-me forçado a tornar a matar, mesmo sem o querer… Observava-me a mim próprio constantemente, sem saber se não estaria próximo de sofrer uma crise… Por exemplo, mal sentia a mais pequena dor de cabeça.” E justifica-se porque é que nunca se entregou à polícia:

Porque leio todos os dias as notícias de jornais… Porque em quase todos os processos de tribunal os psiquiatras vêm testemunhar a favor de um doente do meu tipo e todos troçam deles.

Quando falam de responsabilidade atenuada ou de debilidade mental, o júri não liga nenhuma. Em vez de mandarem o doente para uma clínica, quando muito limitam-se a reduzir a pena a uns quinze ou vinte anos de cadeia. Esforcei-me por resolver o assunto por mim próprio. Mal sentia aproximar-se uma crise, fechava-me no quarto… E isso resultou durante algum tempo. Passo a vida à procura de sintomas, analiso todos os meus reflexos, dou enorme importância aos pensamentos que me vêm à cabeça.”

E desabafa sobre o seu estado de alma naqueles três dias de chuva diluviana, na intensidade da sua angústia, viu sair alguém da taberna, golpeou quem não conhecia, e voltara de novo para o anavalhar e olhar no rosto, não viera qualquer alívio, precisara de vir desabafar com Maigret e entregar-se aos destinos da justiça. No tribunal, os psiquiatras declararam que o acusado não era um alienado mental no sentido legal da palavra, mas que a sua responsabilidade estava largamente atenuada, o advogado de defesa bem suplicou aos jurados que o seu constituinte fosse para um hospital psiquiátrico. Apanhou quinze anos de prisão, o juiz advertiu que no momento presente não havia estabelecimentos apropriados para aquele homem ser tratado eficazmente. Maigret a tudo assistiu, sentindo os ombros mais pesados.

Este romance não é só belíssimo por ser uma história muito bem contada. Outros autores célebres, no âmbito da literatura de crime e mistério, por exemplo Agatha Christie, Anthony Berkeley ou Ellery Queen, revelaram, nesse período de ouro deste subgénero literário, dotes extraordinários no traçado da análise psicológica e na explicação das motivações do crime, mas nenhum destes grandes mestres conseguiu traduzir o que de mais sombrio pode existir na alma humana em linguagem tão simples, deixando naturalmente o leitor abismado com aquilo que nós nunca sabemos por onde passa o instinto assassino, perto ou longe de nós. Tudo conjugado, leio e releio este poderoso romance por nos ajudar a aceitar que há estados de alma que continuam insondáveis.

Mário Beja Santos

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