Domingo, Maio 19, 2024
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Leituras inextinguíveis (121): Temos muito que aprender com este tempo em que os animais não falam, até ao espelho da consciência

Os contos Bichos de Miguel Torga conhece reedições sem fim, trata-se de uma incursão de um dos maiores escritores portugueses do século XX numa dimensão literária onde há grandes obras da literatura clássica, os animais são postos a falar, entre si e até com os humanos, substituindo os mesmos, como é o caso de uma obra famosa de George Orwell que mete uma revolta de porcos, uma tremenda parábola política em que todos os animais são iguais, mas há uns que são mais iguais que outros.

Miguel Torga fotografado por Alfredo Cunha
Miguel Torga fotografado por Alfredo Cunha

O que Miguel Torga procura nestes contos curtos é uma mistura de exemplaridade, de fabulário educativo e mensagens carregadas de avisos, os personagens são um cão (Nero), um gato (Mago), uma mulher (Madalena), um jerico (Morgado), um sapo (Bambo), um galo (Tenório), Jesus criança, uma cigarra (Cegarrega), um pardal (Ladino), um pastor (Ramiro), uma rã (Farrusco), um touro (Miura), um colecionador de bichos (o Sr. Nicolau), um corvo (Vicente). Mas o que mais nos assombra nesta obra verdadeiramente clássica é a magia da prosódia de Torga. Veja-se a forma deslumbrante como ele descreve um prodígio da natureza, neste caso o nascimento da cigarra:

“É difícil. Isto de começar num monturo e só parar na crista de um castanheiro, tem que se lhe diga. É preciso percorrer um longo caminho. Embrião, larva, crisálida… Todas as estações do íngreme calvário da organização. Animada pelo sopro da vida, a matéria necessita do calor de um ventre. Antes dessa última comunhão, desse limbo purificador, não poderá ter forma definitiva. Custa. Mas a lei natural é inexorável. Exige consciência de cosmos antes da consciência de ser. O calor dá no ovo. Aquece-o e amadurece-o. A casca quebra. Depois… Ah, depois é essa descida ao húmus, essa existência amorfa, nem germe, nem bicho, sem coisa configurada. Largos dias assim. Até que finalmente em cada esperança de perna nasce uma perna, e cada ânsia de claridade é premiada com dois olhos iluminados. Cresce também uma boca onde a fome a reclama, e surgem as asas que o sonho deseja.”

Mas Miguel Torga também não desmente as suas raízes, o mundo telúrico é-lhe obsidiante, o seu poder descritivo de pôr homens e mulheres na convivência de pedras escalvadas, terrenos onde o cultivo é calvário, é, sem exagero, inultrapassável. Veja-se o conto Madalena em que esta vem à procura de um apoio para dar à luz um lugar chamado Ordonho, a escrita de Torga não escapa a esta regra de nos expor à dureza das penedias, assim:

“Queimava. Um sol amarelo, tenso, caía a pino sobre a nudeza agreste da Serra Negra. As urzes torciam-se à beira do caminho, estorricadas. Parecia que o saibre duro do chão lançava baforadas de lume.

Madalena arrastava-se a custo no íngreme carreiro cravado no granito, a tropeçar nos seixos ditados por chancas e ferraduras milenárias. De vez em quando parava, através de um postigo aberto na muralha das penedias, olhava o vale ao fundo, já muito longe, onde o corpo lhe pedira para ficar, à sombra de um castanheiro.

Galgada a custo a última rampa, Madalena encarou com terror a imensidade da montanha encarnada e hostil. Cada fragão estremecera! Blocos desmedidos, redondos, maciços, acavalitados uns dos outros num equilíbrio quase irreal, ou então dispersos, solitários, parados e silenciosos pelo planalto além.”

E há um olhar de intensa ternura para esse Menino Jesus que descobrira o ninho e o revelou aos pais, isto enquanto comiam o caldo:

“A Mãe bebia as palavras do filho, a beijá-lo todo com a luz da alma. O Pai regressou ao caldo.

Mas o Menino continuou. Disse que então prendera a cordeira a uma giesta e trepara pela árvore acima.

De novo o Pai levantou as pálpebras cansadas, e ficou tal e qual a Mãe, inquieto, com a respiração suspensa, a ouvir.

E o pequeno ia subindo. O cedro era enorme, muito grosso e muito alto. E o corpito, colado a ele, trepava devagar, metade de cada vez. Firmava primeiro os braços; e só então as pernas avançavam até onde podiam. Aí paravam, fincadas na casca rija.

A subida levou tempo. Foi preciso descansar três vezes pelo caminho, nos tocos duros dos ramos. Por fim, o resto teve de ser a pulso, porque eram já só vergônteas as pernadas da ponta.

Franzidos, nem o Pai nem a Mãe diziam nada. Deixavam, apavorados, mudos, que o pequeno chegasse ao cimo, à crista, e pusesse os olhos inocentes no ovo pintado. O ninho tinha só um ovo.”

É do mais elementar bom-senso que a história tem um final feliz, a criança cansada deixou cair a cabeça tonta de sono no regaço virgem da Mãe.

E há inocência que pode acabar na mais horrorosa das bestialidades. O Pastor Ramiro é de pouquíssimas falas. “A alma enchera-se-lhe de silêncio em vinte anos de Marão. Naquela grande aridez, só a vida que pulsava sem ruído conseguia triunfar. A chamiça, a carqueja, o tojo molar, as lagartixas, as cobras e os saltaricos cresciam no mesmo cauteloso mutismo. No março, a torga floria. Mas não chegava esse alarido de cor para acordar as fragas. E a lição que Ramiro recebia diariamente era a de uma irremediável afonia cósmica, de vez em quando quebrada pelo balido monossilábico de um cordeiro que se ficava esquecido a olhar um seixo, ou pelos uivos do Rilha que, pressuroso, dava sinais de lobo.”

E uma grande tragédia apanha-nos desprevenidos, apareceu outro pastor com o seu rebanho, de nome Ruela, atiram a pedra à barriga de uma cordeira, abortou e morreu. Ramiro acompanhou a agonia do bicho, a mão apertava o cabo da foice, numa raiva açaimada, e num repelão a foice caiu em cheio na cabeça de Ruela, os próprios montes pareciam siderados de espanto. “E, sobre a morte inocente daquele homem, apenas se ouviu, num instante fugidio, um assobio seco, agudo, a chamar o rebanho para o curral.”

Contos com moral, Nero foi cão destemido, na caça não tinha rival, conheceu a velhice duríssima, deixa o filho a substituí-lo, e Torga, numa manifesta atitude de intercalar sentimentos humanos exaltando a fidelidade canina, deixa que Nero se despeça do leitor tocando-nos em todas as cordas do sentimento:

“E à noite, quando o luar dava em cheio na telha-vã da casa, e os montes de S. Domingos, lá longe, pareciam ter já saudade das suas patas seguras e delicadas, quando o cheiro da última perdiz se esvaiu dentro de si, quando o galo cantou a anunciar a manhã que vinha perto, quando a imagem do filho se lhe varreu do juízo, fechou de uma vez os olhos e morreu.”

Não sei se é obra-prima de Miguel Torga, sei é que quando quero procurar compreender a condição humana, venho conversar com estes bichos para dar loas à vida, é leitura que recomendo a toda a gente, o português de Torga continua sem rival.

Mário Beja Santos

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