A literatura de crime e mistério entra em ascensão em sociedades afluentes como a norte-americana e a britânica, ávidas por um entretenimento literário em torno de contextos criminais bem enredados que capturassem o leitor a ter a ilusão de que participavam na descoberta do criminoso, conhecendo-lhe, nas entrelinhas, o móbil do crime ou dos crimes, o leitor sujeito à obrigação de acompanhar a operação detectivesca e procurar desvendar este ou aquele elemento em si revelador das maquinações desse génio criminoso.
E a partir das décadas de 1920 e 1930, deixando para trás essa gloriosa figura de Sherlock Holmes, que movimentou as massas de leitores britânicos, os EUA e o Reino Unido vão produzir admiráveis ficcionistas como Ellery Queen, Agatha Christie, Carter Dickson, Dorothy Sayers, Raymond Chandler ou S. S. Van Dine. É deste último autor que nos vamos ocupar, dele temos gratas recordações da adolescência e da idade jovem graças a romances como Os Tipos do Bispo, O Caso Benson ou A Série Sangrenta, obra de 1928, já Van Dine é autor consagrado.

Van Dine, homem culto e com formação superior, engendrou um detetive de posses e pose aristocrata, petulante, amigo do promotor de justiça de Nova Iorque, este ficou a dever ao detetive amador a revelação de casos extraordinários, crimes aparentemente sem solução. Resta dizer o que guardo como fascinante nesta obra A Série Sangrenta, e que releio sempre com muito prazer. Como ele apresenta o seu herói:
“O homem que conseguiu, à custa de longas semanas de persistentes e, às vezes, infrutíferos esforços, descobrir a origem daquele terror, pertencia à melhor sociedade. Não estou autorizado a revelar o nome deste aristocrata, amigo íntimo do promotor de justiça do distrito, John T. X. Markham; para quantidade do relato, porém, chamar-lhe-ei Philo Vance.” E ele é assim apresentado: “Tinha então 34 anos. Era alto, vigoroso, elegante, e unicamente certa expressão sarcástica no seu semblante impedia que pudesse ser considerado muito formoso. Tinha vivacidade de espírito, grande sensibilidade e cultura. O êxito ruidoso que obteve ao encontrar solução para casos criminais, garantia-lhe a absoluta confiança do promotor de justiça.”
E vamos enveredar numa tragédia. Markham é procurado por Chester Greene, o filho mais velho de Tobias Greene, falecido multimilionário que deixou no seu testamento a exigência de que todos os seus filhos viveriam numa mansão em Nova Iorque obrigatoriamente 25 anos, Chester vem anunciar que a sua irmã Julia apareceu morta a tiro no quarto e outra irmã, Ada, foi baleada nas costas, também no seu quarto. Chester pensava que tinha sido obra de um ladrão, começam as investigações, vamos tomando conhecimento dos diferentes filhos como Rex e Cibele, da viúva Greene, paralítica e de permanente discurso amargo, vociferante, do dr. Von Blon, médico da família, muito próximo de Cibele, mas que tem Ada presa pelo beicinho, um mordomo inglês pouco dado a desabafos, uma estranha cozinheira de origem alemã. No interior desta mansão haverá uma catadupa de assassinatos ou tentativas, crimes com revolver e venenos. Há também uma biblioteca que pertenceu a Tobias Greene, fechada há mais de dez anos, a viúva não autoriza lá entradas. Os crimes são praticados com um revólver que pertencia a Chester, desaparecera, um velho Smith-Wesson, calibre 32.
Vance está sempre presente nos interrogatórios, Cibele é sarcástica, diz o pior possível de Ada, a filha adotada, acusa-a de tudo, Rex é um doente, homem estudioso, autocentrado, nevrótico. Depois Chester é assassinado no seu quarto, todas aquelas mortes e tentativas têm algo de insólito, como se as vítimas recebessem familiarmente no quarto os assassinos, isto independentemente de Ada, a vítima baleada, tenha dito que o quarto estava às escuras e que sentiu alguém a aproximar-se. Há indícios um tanto incongruentes, marcas de galochas à porta de casa, descobrem-se as galochas e depois alguém as faz desaparecer. A todo o momento Van Dine pretende dar-nos uma apresentação rápida e incisiva de quem vive naquela mansão, caso de Rex: “Entrou meio enervado com um cigarro ao canto da boca. Sombras profundas rodeavam-lhe os olhos; o seu semblante denotava um infinito cansaço e os dedos, curtos e planos, puxavam nervosamente a gola do casaco de fumar. Deitou-nos um olhar assustado e rancoroso, e parou na nossa frente.” Toda a conversa que se seguirá evidencia a personalidade de um nevrótico e intimidado.
Haverá um passeio de automóvel até um lugar selvagem, terrivelmente escarpado, culminando num precipício, uma das meninas Greene dirá que é um sítio admirável para um assassínio, aí se passará o desfecho final da Série Sangrenta de crimes tão habilmente maquinados. Rex aparecerá morto no quarto, a viúva Greene morrerá envenenada, Philo Vance exigirá entrar na biblioteca de Tobias Greene, descobre que alguém, à luz da vela, ali leu um conjunto de obras de criminologia. Ada aparecerá envenenada, volta a salvar-se, virá depois confessar a Philo Vance que viu a mãe a caminhar pelos corredores da casa, algo de inconcebível. Vance parte para uma viagem misteriosa, Cibele vai passar férias em Atlantic City. E chega-se ao intenso clímax, depois de uma perseguição a um automóvel, descobre-se a tentativa de mais um crime, e aquele arquiteto da Série Sangrenta suicida-se com cianeto de potássio. Como nas boas obras da época não há a reunião dos suspeitos e a denúncia do criminoso, mas Philo Vance promove uma ceia em sua casa e vem depois a esmagadora verdade que deixa deslumbrados o promotor de justiça e os detetives. Dirá coisas como: “Antes de ter conseguido explicar os crimes, notei que me faltava um pormenor no quadro: a inclinação ou propensão criminosa fundamental, isto é, o que tornou possível esta sucessão de horrores viável a sua realização.” A leitura dos livros descobertos na biblioteca Greene tinham sido para ele altamente reveladores. E revela o móbil real, as motivações daqueles crimes, uma estranha e terrível combinação de ódio, de amor, de ciúme e de ânsia de liberdade. E enumera a natureza de crimes constantes naqueles livros de criminologia que estava na biblioteca de Tobias Greene.
Deve-se a Joel Lima a fenomenal organização da Coleção Vampiro, era editada por Livros do Brasil, dir-se-á que estes mestres como Erle Stanley Garner, A. A. Fair, Frank Gruber, e os já citados Agatha Christie, Ellery Queen ou Dorothy Seyers, bem como S. S. Van Dine estão hoje fora de moda, o leitor acha fastidioso o desvendar um crime através de uma investigação tantas vezes tortuosa, o mundo de hoje sente-se mais aliciado por outro tipo de crimes e por retratos psicológicos, bem mais próximos de figuras que podemos identificar. Da minha parte, mantenho profunda saudade a revisão destes mestres isto hoje chegados pelas boas leituras que me proporcionaram, e se prefiro Georges Simenon e o seu incomensurável comissário Maigret ao petulante Philo Vance, considero que este é uma referência absoluta de um tempo e de uma exigência do público; acresce que nos legou um conjunto de obras-primas como é o caso de Os Crimes do Bispo, este no topo de uma galeria de histórias bem-sucedidas e que a história de literatura de crime e mistério trata com profundo respeito.
Mário Beja Santos