InícioCultura & lazerUma manhã na Casa de Camões, junto ao Tejo

Uma manhã na Casa de Camões, junto ao Tejo

«Em um batel que com doce meneio/ O aurífero Tejo dividia/ Vi belas damas, ou, melhor diria/ Belas estrelas e um Sol no meio…»

(Soneto de Camões, in Manuscrito de Luís Franco Correia, BNP, 1589).

 

O sol era ele, o Poeta de Portugal, no meio das belas tágides por quem sempre o Tejo chora, frente à fresca Casa de Camões, que lá está recuperada sob o comando jupiteriano de Máximo Ferreira, o célebre e competente astrofísico o qual também lidera, com um saber de experiências feito e muito estudo, o planetário de Constância, atraído talvez por aquela cósmica e camoniana Máquina do Mundo que Tétis mostra ao Gama no Canto IX da Epopeia.

A écloga de Camões, lembra os dias alegres, solares, doutro tempo, anterior a estes de trevas nossos

«que move os corações a grande espanto/ E parece que Júpiter potente/ Se enfada já do mundo durar tanto/ O Tejo corre turvo e descontente..».

Esta queixa do Poeta à morte do amigo António de Noronha, deve ser uma estranha premonição da fábrica poluente que agora, desde há décadas, lhe puseram diante, a esta Casa, na margem do outrora calmo, poético, claro e brando rio.

 

Vítor Serrão, Máximo Ferreira e Mário Rui Silvestre.
Vítor Serrão, Máximo Ferreira e Mário Rui Silvestre.

Mesmo assim, fomos lá, eu e o Vítor Serrão, ilustre camonista, acedendo ao honroso convite da Casa Memória de Camões e do seu amistoso Presidente conhecedor de estrelas e outros recônditos astros esparsos pelo Cosmos infinito e admirável.

A sala, confortável, com familiar auditório, encheu-se para ouvir falar dos desterros de Camões por estes rios que vão por Ribatejo, amores dele pelas belas ninfas dos mesmos rios, doutras Damas de alto coturno e menos, que «nem todo o mato são orégãos», como o Poeta lembra numa certa Carta sobre este profundo assunto.

Mas também das prisões baixas, onde Camões foi várias vezes atado, por amores desatados, paixão assolapada, erros dele, má fortuna, amor ardente, conhecidos.

 

Casa Memória de Camões fechada por falta de apoios

Ruínas antigas, em Constância, daquela que é considerada a Casa de Camões.
Ruínas antigas, em Constância, daquela que é considerada a Casa de Camões.

Menos conhecida do Poeta deste Povo e da Pátria, é esta vergonha a que o Estado português, que não sabe Arte nem a estima, deixa há anos fechada, por falta de apoios, esta Casa Memória de Camões, todos, os apoios, poucos para dar aos amigos que não ao Poeta maior de Portugal, autor do Grande Livro dos Portugueses que conta o tempo em que este pequeno povo da ocidental praia lusitana, por mares nunca dantes navegados, vencendo medos e monstros, uniu dois oceanos, fundou cidades, juntou territórios desunidos e perigosos, mostrou-lhes da civilização ocidental que não conheciam não só aquela faceta negra dela, que essa conheciam eles, os povos ditos colonizados, bem de si próprios, cativando-se por escravos uns aos outros, atirando na India as mulheres para as fogueiras onde ardiam os maridos mortos, tendo-as em África arrebanhadas para os Sobas tribais para cada dezenas delas, ou no Brasil tribos antropófagas que se comiam umas às outras e a alguns companheiros de Cabral quando lá chegou, e a muitos outros depois, antes de lhes ser explicado o humanismo cristão, assim chamado, contrário ao «comei-vos uns aos outros» até certo ponto, no céu novas estrelas a sul do equador, no mar nova navegação por novas rotas, na ciência de curar novas plantas de remédios novos, daquele Orta sábio e coloquial que Camões conheceu, novos livros de como outros não teve a Europa nem o mundo daquele tempo, «Esmeraldo de Situ Orbis», «Pereginação», «Os Lusíadas», «Colóquio dos Simples» de ciência, poesia, nos melhores casos, modos novos de honrar a dignidade humana, amor ao próximo, caridade e fraternidade universal. O parágrafo ficou extenso podendo alongar-se mais, e mesmo assim ainda seria curto para explicar a uma certa cultura Woke, passe a expressão, que anda por aí a fingir de culta, com desprezo pela história, a vida e consciência possível a cada momento dela, que Camões e os portugueses que cantou, no mais belo livro da exaltação do esforço humano dos tempos modernos, Cultura e Arte, não tem que se envergonhar nada do seu passado histórico no mundo que liderou a par das outras nações todas dele, iguais ou piores nos defeitos, mas não na ciência e método experimental que é o dela, aquele camoniano pleonasmo, alerta aos que falam de tudo sem saber nada, «vi, claramente visto», força de lutar contra os adamastores de hoje de nos voltam a ameaçar, autocriticando-nos sem medo, lúcido e claro, com aquele velho venerando do Poema, que nos alerta ainda para «essa vaidade a quem chamámos fama», avisando para nem sempre as etapas necessárias para atingirmos um bem colectivo pode incorrer em males privados aos indivíduos que o buscam.

 

“Nem todo o mato são orégãos”

Camões na prisão, mostrando a pouca comida e dinheiro, com que o deixam morrer. Ainda hoje.
Camões na prisão, mostrando a pouca comida e dinheiro, com que o deixam morrer. Ainda hoje.

Até nisto Camões nos honrou. Sim, ao contrário de um Presidente que não consegue saber, por mais que faça, numa inquietação, inquietação insana, que o domina e contagia os outros, «que nem todo o mato são orégãos», que os portugueses não têm nada que se envergonhar do seu passado, da língua que deram a meio mundo para ainda hoje falar, as cidades que lhes deixaram para viver, territórios unidos que antes eram campos tribais de lutas, livros que os ensinaram poesia a compreender o mundo, amor, arte e pensamentos novos, numa troca e descoberta, que foi mútua, de culturas, religiões, saberes e modos de viver. Não são precisos ressentimentos, o mal e o bem, são intemporais, não pertença apenas de conquistados ou conquistadores, alguma vez unidos ou separados.

O tempo muda com a mudança e a mesma mudança não cessa de mudar, disse-o duma vez para sempre Luís Vaz de Camões, o Poeta de Portugal. Não temos que ir todos, como quis o tal Presidente apressado, a pé, corda ao pescoço, flagelando-nos com açoites pelo caminho, pedir perdão à Senhora de Fátima, por termos sido o povo colonial que fomos, como foram, de uma forma ou outra, com escravos entre si ou aprisionando os de fora, todos os povos da Europa e quase do mundo de todos os tempos.

 

Foi uma bela manhã esta junto ao Tejo, com amigos, a falar de Camões, naquela Casa Memória sua em Constância, escravizado também ele, o Tejo, a um dito «progresso» sem regras nem respeito pelo planeta, natureza e cosmos, que tardamos em ultrapassar. Vale.

 

Mário Rui Silvestre

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