Italo Calvino está consagrado como um dos maiores escritores italianos do século XX. Despontou muito jovem para a literatura, na década de 1940, mas ganhou notoriedade internacional com a sua trilogia fantástica Os Nossos Antepassados, desta série constituída por O Visconde Cortado Ao Meio, O Barão Trepador, a terceira obra intitula-se O Cavaleiro Inexistente, foi editado em 1959, tem entre nós sucessivas edições desde os anos 1960, a mais recente é de 2024 em Publicações Dom Quixote.
Em que consiste este consenso da crítica de que esta obra é uma cáustica e espirituosa sátira sobre os assuntos do homem moderno? Vivemos hoje numa sociedade de hiperconsumo, logo o hiperindividualismo está no topo das suas manifestações. Será que temos modos de viver e uma mentalidade supinamente medieval, em que se ambienta este cavaleiro que não existe, mas que tem armadura?
Quem é este Agilulfo, cavaleiro valente e nobre que faz parte do exército de Carlos Magno? Este cavaleiro não consegue comer nem dormir, porque se acaso perdesse a concentração deixava de existir. Só nesta metáfora se pressente o jocoso de uma presença pela aparência, alguém que garante ter os valores do seu tempo e no fundo age no mais total dos anacronismos. Se hoje vivemos numa sociedade de heróis efémeros, como efémero é o Olimpo em que se movimentam as estrelas (as da televisão, cançonetismo, desporto…) as popstars que nos condimentam a curiosidade sobretudo nas redes sociais, que pensar deste paladino de nome pomposo, ele não é só Agilulfo, é Agilulfo Emo Bertrandino dos Guildivernos e dos Outros de Corbentraz e Sura, cavaleiro de Selímpia Cinterior e Fez. É um cavaleiro de pompa e circunstância, burocrático, protocolar, segue estritamente todos os regulamentos.
Vão entrando outros personagens neste exército de Carlos Magno, é o caso de Rambaldo, de Rossilhão, vem vingar o seu pai morto como herói sob as muralhas de Sevilha. Não subsistem dúvidas que toda esta trama da paródia montada por Italo Calvino é uma guerra de cruzada. Assim como Dom Quixote teve direito a escudeiro, Sancho Pança, entra na história Gurdulu, chocarreiro e rezingão e glutão. O escritor procura desvelar ao leitor as analogias entre o tempo medieval e o presente:
“Ainda era confuso o estado das coisas do mundo, na Idade Média, onde se desenrola esta história. Não era raro ir-se de encontro a nomes, a pensamentos, a formas, a instituições, que não correspondiam a nada de real. Por outro lado, o mundo regurgitava de coisas, de energias e de seres que nada, nem mesmo o nome, diferençava do resto. Era uma época onde a vontade e a obstinação de estar lá, de marcar a sua passagem, de contatar com tudo aquilo que existe, acabava por não ser utilizada inteiramente.”
E o leitor é surpreendido porque o que se está a contar é uma crónica, quem a redige é Soror Teodora, religiosa da Ordem de São Columbano. Entra-se no furor da batalha, atiçam-se os palavrões, fervem as espadeiradas, Rambaldo mata quem lhe matou o pai. Como nas histórias medievais, surge um devaneio amoroso, só no final desta crónica se irá apurar quem era aquela guerreira; e nisto surge uma nova contenda, Agilulfo irá correr toda a França, a Inglaterra e o Norte de África para confirmar a castidade da filha do Rei da Escócia, que salvou, 15 anos antes, de uma violação.
É uma tumultuosa itinerância, o escudeiro aparece e desaparece, Soror Teodora confessa que ela própria está confusa a descrever a loucura dos mortais. “A arte de escrever histórias está no saber tirar das pequenas coisas que se apanham da vida tudo o resto; mas acabada a página retorna-se à vida e apercebemo-nos do que o que sabíamos era o mesmo que nada.” Aquela guerreira que suscita amores, Bradamante, não tem uma ideia muito lisonjeira da cavalaria e para ela os cavaleiros são uma cambada de estúpidos. A paixão entre Bradamante e Agilulfo não passa de um idílio platónico. Nova guinada na complexidade da história, temos agora entrado em cena Torrismundo, diz-se nascido fora do matrimónio, está ligado à Ordem dos Cavaleiros do Santo Graal, Carlos Magno ordena que ele se irá juntar aos cavaleiros e fazer-se reconhecer como filho da Ordem. Dentro deste enredo das itinerâncias, o cavaleiro inexistente cai nas garras da viúva Priscilla, mulher de luxúria, a sua galeria de amantes é infindável, ela bem tenta, manifestamente afogueada, atrair o cavaleiro para o leito, ele responde que às damas nuas se aconselha, como a mais sublime emoção dos sentidos, que se abracem a um guerreiro vestido de armadura, abraçados sobem ao cimo da torre, os róseos joelhos de Priscilla roçam as joalheiras metálicas do cavaleiro, nascia uma nova intimidade, mais inocente. E o cavaleiro parte, Priscilla confessa estar deslumbrada, foi uma noite, sem intervalos, um paraíso.
A cronista continua o relato das aventurosas viagens de Agilulfo e do seu escudeiro em busca da prova da virgindade de Sofrónia, episódios entrecruzados não faltam, com Rambaldo, Torrismundo e os cavaleiros do Graal, o relato acelera-se, as paixões incendeiam-se, reaparece Carlos Magno, o cavaleiro inexistente tem a sua honra reconhecida, afinal Sofrónia criara Torrismundo, era seu irmão, ou melhor, seu meio-irmão, a Rainha da Escócia, mãe dos dois, andava o monarca na guerra, tivera um encontro fortuito…
O livro está agora no fim, a freira ouve na sua cela de convento a voz de Rambaldo, afinal a freira é Bradamante, arranca a touca, as faixas claustrais, a sotaina, tira do cofre a couraça, as grevas, o elmo, as esporas e a cota cor de pervinca. “Sim, livro, a irmã Teodora que contava esta história e a guerreira Bradamante são a mesma mulher. Umas vezes galopo pelos campos de guerra entre duelos e amores, outras vezes fecho-me nos conventos, meditando e escrevendo as histórias que me acontecem, para procurar compreendê-las. Quando procurei refúgio aqui estava desesperada de amor por Agilulfo. Agora ardo pelo jovem e apaixonado Rambaldo (…) Eu falei do passado e por vezes do presente quando, nos momentos mais agitados, se apoderava da minha mão. Mas eis que salto para a sela do teu cavalo, ó futuro. Que novos pendões me agitas das ameias das torres de cidades ainda não fundadas? Que fogo devastador rolará dos castelos e dos jardins que eu amava? Que idades de ouro imprevisíveis me preparas tu, ó tu malgovernado, tu, foreiro de tesouros pagos a preço tão caro, tu, meu reino a conquistar, futuro.”
Escreveu um crítico que a prosa de Italo Calvino é resplandecente, impessoal, brilhante e duradoura. Voltar a ler O Cavaleiro Inexistente é prova provada desta modernidade quase intemporal.
Mário Beja Santos